quinta-feira, 25 de junho de 2009

Geografia do fruto

Ela era áspera como uma faca atravessando uma maçã. Ou um dente mordendo uma maçã sem sentir o seu sumo quase virginal de maçã. Mas era doce e pecaminosa feito uma manga. A maçã não é o fruto do pecado – mas é a manga, carnuda feito o demônio, de se ir comendo com os olhos e a boca, de se ir se lambuzando e lambendo e se devorando os dedos na deformidade do gesto e das formas do fruto polpudo, fibroso, desafiador, comer uma manga é uma profanação, não há roteiro ou guia para o rito, a manga é um pecado! dizia o Emanuel que decerto muitas vezes ia se abrigar embaixo da mangueira para se encontrar com suas raparigas, a mãe doente tossindo sangue pelo nariz pela boca até pelos olhos de tanta raiva e ódio. Mas a manga é um fruto da criação, seu Emuanuel, como o morango a mangaba o abacate a carambola a seriguela, Joaquina era temente a Deus e gostava de apreciar sua obra – às vezes me levava com ela para passearmos até o bosque no alto do rio, rio podre que matava aos poucos seus peixes magros, boiando na superfície de óleo, o homem, veja, o homem destrói o que Deus cria, os peixes, o homem é um bicho, os peixes. Emanuel é bicho pior, eu disse não sei se chorando de incompreensão ou de uma raiva mansa daquele homem que tinha o brilho natural da mentira nos olhos. Joaquina consentiu dando uma mordida num pêssego bem maduro e me oferecendo, como quem oferece uma palavra dócil de carinho e apoio. Sua mãe gosta dele, falou e jogou a fruta no rio que abrindo espaço no lamaçal descortinou tecidos de água suja abaixo do cemitério dos peixes, ela ama muito Emanuel.
Quando ela chegou, senti raiva como nunca havia sentido antes. Mãe tão velha, lábios murchos cor de argila, cara esbranquiçada como se tomasse um eterno susto da eternidade, cabelos encrespados – antes de ouro agora de prata, ele leu isto em algum poema certamente, recitava para ela enquanto lhe acariciava os seios visivelmente enojado, ouro, prata, depois barro e depois se desfariam no ar, num sopro de brisa. Tive raiva de Alzira por ela ser tão jovem e tão bonita e por ter dois seios feito duas mangas, mas acho que não pensei nisto logo que a vi, tão ocupado estava em odiá-la mastigá-la com meu ódio atravessá-la com meu nocivo e altivo ódio. Emanuel dissera-lhe que ia mandar Joaquina lhe ensinar a cozinhar e a varrer bem uma casa e que eu lhe ensinaria aritimética gramática história geografia, essas coisas de maricas que ele presumia que eu sabia muito e bem, tanto vivia eu enfurnado nos livros, naquela velha gramática do pai, encouraçada em vermelho e negro, mas também havia o de Stendhal e um Cervantes e um Balzac. Seu pai era homem de muita cultura e muita gravidade, Joaquina dizia, eu sem entender: gravidade por quê? Era tudo o que Emanuel não tinha, nem cultura muito menos a gravidade, era um homenzinho qualquer, que se esfregava na primeira rameira que via como quem se roça numa toalha felpuda, que não tinha o hábito de chegar e sentar-se na varanda para tirar os sapatos, as meias, ler o jornal, olhar o longe, o sol tingindo de pecado e desejo o céu e se sentir um homem grande e bom. Eu queria tudo mas antes ser um homem de atos graves feito o pai.
Emanuel trancou a mim e a Alzira no meu quarto e disse que só sairia depois de pôr algo na cabeça daquela cadela estúpida, falou nomes piores mais no intuito de me alertar do perigo que ela representava para mim do que de ferí-la com grossuras. Eu não deveria ultrapassar o limite: ela era dele. Até minha mãe virara dele e não minha, quando ela me via ajoelhado em seu leito me fitava como se visse a morte e gritava com uma ânsia dolorosa como são dolorosos os gritos dos velhos doentes e das crianças convalescentes. Minha mãe era uma uva desidratada ao sol mais agreste da vida. Alzira sabia o que eram uvas passas? sabia o que era Natal? sabia o que era ganhar um presente durante o sono? Então senti tanta pena dela, daquele rosto vulgar e indecente, que decidi começar a lição ensinando-lhe geografia para que assim aquela pobre menina soubesse ao menos onde fica o pólo norte, a Europa, e que há lugares no mundo onde chove flocos estrelados em vez de água com gosto de barro.
Perguntei se ela sabia ler ela disse que assim assim. Assim assim como? Me ensinaram mas faz tanto tempo que acho que esqueci. Mas ninguém esquece como se lê, eu disse e ri e ela não entendeu nada e confirmou mentalmente o que Emanuel havia lhe dito: é um maricas que não vale bosta alguma. Ela cheirava feito um mamão abusadamente doce até a náusea. Eu disse então vou lhe ensinar geografia que é o estudo dos lugares e das coisas que estão em cima da terra. Ela riu e disse que oras tudo está em cima da terra e os lugares são muitos, cada lugar não deixa de ser um lugar, então essa geografia deve de estudar qualquer coisa, como eu e você. Eu disse que não porque existem coisas que não estão em cima da terra e nem são lugares porque não existem nesse mundo. Mas se não existem como é que existem? Existem, eu disse, mas a gente não vê porque estão guardadas dentro de nós, de nossa cabeça, de nossa alma. Ela perguntou isso também é geografia, eu falei que ia lhe ensinar filosofia e religião, porque elas estudam as coisas que transcendem a gente quer dizer que existem mas é como se não existissem. Eu percebia lentamente que estava lhe dando um fruto envenenado.
No dia seguinte, ela entrou no meu quarto, um tanto mais cedo do que havíamos combinado e disse fiquei pensando nessa tal de geografia e acho que nunca vão conseguir estudar todos os lugares porque só de fazendas iguais a essa Sacramento do Riacho está cheia e são terras de se perder de vista. Sorri e disse que já devia ser hora da lição: que ela se sentasse em minha cama que eu lhe diria algumas coisas, caso não entendesse devia perguntar que eu explicava de novo. Ela era bonita como uma árvore carregada de abacates. Era bonita como se natureza fosse uma mulher. Como fora bonita minha mãe antes da doença, erva daninha que nenhum médico havia de exterminar se dependesse do canalha do Emanuel, tive ganas de dizer a Alzira que tomasse cuidado com ele, que ele ia machucá-la, ferrateá-la como a um boi, buliná-la feito a uma cabra ou coisa pior. Ia consumir a juventude de Alzira, já nos estertotes (dezenove, vinte e um, vinte e dois anos no máximo). Há áreas extensas e planas a que chamamos planícies como o teu colo, há também os montes feito teus seios, elevações escarpas picos serras, o vale da tua barriga lisa até a grande depressão...! Ela riu-se como quem aprendia geografia brincando de erguer cidades e eu me senti sujo como quem descobria o amor.
No terceiro dia, disse que lhe ensinaria geografia e talvez aritimética (somar, tirar, noves fora zero) próximo ao rio, somando quatro abacates a seis laranjas e dividindo por cinco mamões. Emanuel não poderia saber, eu disse, e ela consentiu mordendo uma pêra deixando escorrer o sumo pelo canto da boca e pelo pescoço até desvanecer na tímida planície do seu colo, como um Ganges se abrindo em dedos nas planície. Quando ela chegou, esbaforida, eu estava com os pés descalços fincados na terra ainda molhada da chuva da manhãzinha, ela disse seus pés são muito brancos mas tão bonitos, então eu disse que ela estava muito bonita com o cabelo amarrado atrás. E nos olhamos por demorados segundos ou minutos, licença da eternidade para aquele estranho sentimento de querer não devorá-la feito uma fruta mas fazer dela um doce viscoso e guardar numa compota, plasmá-la no açúcar, conservar sua inocência para sempre num vidro – e senti como nunca ódio de Emanuel, que espoliava de Alzira um bem tão precioso como a sua pureza que a fazia achar que o mundo se resumia a Sacramento do Riacho, que havia só um mundaréu de fazendas e devia ser natural se sujeitar a um patrão sórdido e mal cheiroso. Na minha indignação fui tão homem e tão grave quanto meu pai.
Disse a ela Alzira, Emanuel não merece nossa comiseração (compaixão, pena, dó) ele é um verme doentio, eu sei o que ele faz com você, mas não precisa ficar assim, você não é a primeira, mas Deus queira você seja a última vítima desse cachorro, nós vamos dar um corretivo nele, não, não chore, não precisa ter vergonha de ser uma menina tão pura que eu sei que você é, tão digna, eu sei, não chore. E seus lábios que nunca estiveram tão próximos dos meus (vulcão, lava, magma, umbigo da terra) sussuraram qualquer coisa muito difícil de ser ouvida mas que entendi: era um sussuro de folhas ao vento ou a voragem de ondas no fundo da praia.
Foi naquela noite que Emanuel surpreendeu Alzira trocando os lençóis de minha mãe, que a olhava muda e severa, e ficou louco de desejo. Ordenou que Alzira suspendesse de imediato sua função e que lhe servisse ali mesmo, na frente daquela estátua de olhos azeitados e lentos, aquela mulher que um dia fora milionária exportando suco em caixinha para América Latina Estados Unidos Europa Ásia África, lugares que Alzira ainda não aprendera. Ele a deitou no chão de madeira, despiu seu vestido e lhe sorveu esfomeado como um gomo macio de mexerica os seios (ela pensando serra escarpa morro vale) e mordeu-lhe o lábio fruto maduro até sangrar para se alimentar do sumo verdadeiro. Alzira olhou para a velha em estado de infinito, teve muita pena dela como da própria mãe, quis soltar-se do cão instalado sobre si feito seu dono e senhor e com a tesoura que estava a seu alcance sobre a penteadeira ela o furou como quem estraçalhasse um tomate podre. Saiu correndo pelo corredor, nua mas coberta por um lençol azul, as pontas dos dedos sujas de sangue, entrou no meu quarto feito uma tempestade e disse agora eu sei que existem muitas coisas que estão sobre a terra e abaixo do céu mas não vemos porque achamos que elas não existem até a gente descobrir. Eu disse Hamlet e ela quis sorrir mas não conseguiu. Disse vou embora amanhã bem cedo. Eu falei que não. Então, na geografia do seu ventre, descobri que o amor é doce e puro feito uma fruta-do-conde.


M.V.F., 23-6-09

2 comentários:

maaa disse...

onwww

"descobri que o amor é doce e puro feito uma fruta-do-conde."

B. disse...

muito bom...
;)
http://algoquetenhoadizer.blogspot.com/