quinta-feira, 25 de junho de 2009

Geografia do fruto

Ela era áspera como uma faca atravessando uma maçã. Ou um dente mordendo uma maçã sem sentir o seu sumo quase virginal de maçã. Mas era doce e pecaminosa feito uma manga. A maçã não é o fruto do pecado – mas é a manga, carnuda feito o demônio, de se ir comendo com os olhos e a boca, de se ir se lambuzando e lambendo e se devorando os dedos na deformidade do gesto e das formas do fruto polpudo, fibroso, desafiador, comer uma manga é uma profanação, não há roteiro ou guia para o rito, a manga é um pecado! dizia o Emanuel que decerto muitas vezes ia se abrigar embaixo da mangueira para se encontrar com suas raparigas, a mãe doente tossindo sangue pelo nariz pela boca até pelos olhos de tanta raiva e ódio. Mas a manga é um fruto da criação, seu Emuanuel, como o morango a mangaba o abacate a carambola a seriguela, Joaquina era temente a Deus e gostava de apreciar sua obra – às vezes me levava com ela para passearmos até o bosque no alto do rio, rio podre que matava aos poucos seus peixes magros, boiando na superfície de óleo, o homem, veja, o homem destrói o que Deus cria, os peixes, o homem é um bicho, os peixes. Emanuel é bicho pior, eu disse não sei se chorando de incompreensão ou de uma raiva mansa daquele homem que tinha o brilho natural da mentira nos olhos. Joaquina consentiu dando uma mordida num pêssego bem maduro e me oferecendo, como quem oferece uma palavra dócil de carinho e apoio. Sua mãe gosta dele, falou e jogou a fruta no rio que abrindo espaço no lamaçal descortinou tecidos de água suja abaixo do cemitério dos peixes, ela ama muito Emanuel.
Quando ela chegou, senti raiva como nunca havia sentido antes. Mãe tão velha, lábios murchos cor de argila, cara esbranquiçada como se tomasse um eterno susto da eternidade, cabelos encrespados – antes de ouro agora de prata, ele leu isto em algum poema certamente, recitava para ela enquanto lhe acariciava os seios visivelmente enojado, ouro, prata, depois barro e depois se desfariam no ar, num sopro de brisa. Tive raiva de Alzira por ela ser tão jovem e tão bonita e por ter dois seios feito duas mangas, mas acho que não pensei nisto logo que a vi, tão ocupado estava em odiá-la mastigá-la com meu ódio atravessá-la com meu nocivo e altivo ódio. Emanuel dissera-lhe que ia mandar Joaquina lhe ensinar a cozinhar e a varrer bem uma casa e que eu lhe ensinaria aritimética gramática história geografia, essas coisas de maricas que ele presumia que eu sabia muito e bem, tanto vivia eu enfurnado nos livros, naquela velha gramática do pai, encouraçada em vermelho e negro, mas também havia o de Stendhal e um Cervantes e um Balzac. Seu pai era homem de muita cultura e muita gravidade, Joaquina dizia, eu sem entender: gravidade por quê? Era tudo o que Emanuel não tinha, nem cultura muito menos a gravidade, era um homenzinho qualquer, que se esfregava na primeira rameira que via como quem se roça numa toalha felpuda, que não tinha o hábito de chegar e sentar-se na varanda para tirar os sapatos, as meias, ler o jornal, olhar o longe, o sol tingindo de pecado e desejo o céu e se sentir um homem grande e bom. Eu queria tudo mas antes ser um homem de atos graves feito o pai.
Emanuel trancou a mim e a Alzira no meu quarto e disse que só sairia depois de pôr algo na cabeça daquela cadela estúpida, falou nomes piores mais no intuito de me alertar do perigo que ela representava para mim do que de ferí-la com grossuras. Eu não deveria ultrapassar o limite: ela era dele. Até minha mãe virara dele e não minha, quando ela me via ajoelhado em seu leito me fitava como se visse a morte e gritava com uma ânsia dolorosa como são dolorosos os gritos dos velhos doentes e das crianças convalescentes. Minha mãe era uma uva desidratada ao sol mais agreste da vida. Alzira sabia o que eram uvas passas? sabia o que era Natal? sabia o que era ganhar um presente durante o sono? Então senti tanta pena dela, daquele rosto vulgar e indecente, que decidi começar a lição ensinando-lhe geografia para que assim aquela pobre menina soubesse ao menos onde fica o pólo norte, a Europa, e que há lugares no mundo onde chove flocos estrelados em vez de água com gosto de barro.
Perguntei se ela sabia ler ela disse que assim assim. Assim assim como? Me ensinaram mas faz tanto tempo que acho que esqueci. Mas ninguém esquece como se lê, eu disse e ri e ela não entendeu nada e confirmou mentalmente o que Emanuel havia lhe dito: é um maricas que não vale bosta alguma. Ela cheirava feito um mamão abusadamente doce até a náusea. Eu disse então vou lhe ensinar geografia que é o estudo dos lugares e das coisas que estão em cima da terra. Ela riu e disse que oras tudo está em cima da terra e os lugares são muitos, cada lugar não deixa de ser um lugar, então essa geografia deve de estudar qualquer coisa, como eu e você. Eu disse que não porque existem coisas que não estão em cima da terra e nem são lugares porque não existem nesse mundo. Mas se não existem como é que existem? Existem, eu disse, mas a gente não vê porque estão guardadas dentro de nós, de nossa cabeça, de nossa alma. Ela perguntou isso também é geografia, eu falei que ia lhe ensinar filosofia e religião, porque elas estudam as coisas que transcendem a gente quer dizer que existem mas é como se não existissem. Eu percebia lentamente que estava lhe dando um fruto envenenado.
No dia seguinte, ela entrou no meu quarto, um tanto mais cedo do que havíamos combinado e disse fiquei pensando nessa tal de geografia e acho que nunca vão conseguir estudar todos os lugares porque só de fazendas iguais a essa Sacramento do Riacho está cheia e são terras de se perder de vista. Sorri e disse que já devia ser hora da lição: que ela se sentasse em minha cama que eu lhe diria algumas coisas, caso não entendesse devia perguntar que eu explicava de novo. Ela era bonita como uma árvore carregada de abacates. Era bonita como se natureza fosse uma mulher. Como fora bonita minha mãe antes da doença, erva daninha que nenhum médico havia de exterminar se dependesse do canalha do Emanuel, tive ganas de dizer a Alzira que tomasse cuidado com ele, que ele ia machucá-la, ferrateá-la como a um boi, buliná-la feito a uma cabra ou coisa pior. Ia consumir a juventude de Alzira, já nos estertotes (dezenove, vinte e um, vinte e dois anos no máximo). Há áreas extensas e planas a que chamamos planícies como o teu colo, há também os montes feito teus seios, elevações escarpas picos serras, o vale da tua barriga lisa até a grande depressão...! Ela riu-se como quem aprendia geografia brincando de erguer cidades e eu me senti sujo como quem descobria o amor.
No terceiro dia, disse que lhe ensinaria geografia e talvez aritimética (somar, tirar, noves fora zero) próximo ao rio, somando quatro abacates a seis laranjas e dividindo por cinco mamões. Emanuel não poderia saber, eu disse, e ela consentiu mordendo uma pêra deixando escorrer o sumo pelo canto da boca e pelo pescoço até desvanecer na tímida planície do seu colo, como um Ganges se abrindo em dedos nas planície. Quando ela chegou, esbaforida, eu estava com os pés descalços fincados na terra ainda molhada da chuva da manhãzinha, ela disse seus pés são muito brancos mas tão bonitos, então eu disse que ela estava muito bonita com o cabelo amarrado atrás. E nos olhamos por demorados segundos ou minutos, licença da eternidade para aquele estranho sentimento de querer não devorá-la feito uma fruta mas fazer dela um doce viscoso e guardar numa compota, plasmá-la no açúcar, conservar sua inocência para sempre num vidro – e senti como nunca ódio de Emanuel, que espoliava de Alzira um bem tão precioso como a sua pureza que a fazia achar que o mundo se resumia a Sacramento do Riacho, que havia só um mundaréu de fazendas e devia ser natural se sujeitar a um patrão sórdido e mal cheiroso. Na minha indignação fui tão homem e tão grave quanto meu pai.
Disse a ela Alzira, Emanuel não merece nossa comiseração (compaixão, pena, dó) ele é um verme doentio, eu sei o que ele faz com você, mas não precisa ficar assim, você não é a primeira, mas Deus queira você seja a última vítima desse cachorro, nós vamos dar um corretivo nele, não, não chore, não precisa ter vergonha de ser uma menina tão pura que eu sei que você é, tão digna, eu sei, não chore. E seus lábios que nunca estiveram tão próximos dos meus (vulcão, lava, magma, umbigo da terra) sussuraram qualquer coisa muito difícil de ser ouvida mas que entendi: era um sussuro de folhas ao vento ou a voragem de ondas no fundo da praia.
Foi naquela noite que Emanuel surpreendeu Alzira trocando os lençóis de minha mãe, que a olhava muda e severa, e ficou louco de desejo. Ordenou que Alzira suspendesse de imediato sua função e que lhe servisse ali mesmo, na frente daquela estátua de olhos azeitados e lentos, aquela mulher que um dia fora milionária exportando suco em caixinha para América Latina Estados Unidos Europa Ásia África, lugares que Alzira ainda não aprendera. Ele a deitou no chão de madeira, despiu seu vestido e lhe sorveu esfomeado como um gomo macio de mexerica os seios (ela pensando serra escarpa morro vale) e mordeu-lhe o lábio fruto maduro até sangrar para se alimentar do sumo verdadeiro. Alzira olhou para a velha em estado de infinito, teve muita pena dela como da própria mãe, quis soltar-se do cão instalado sobre si feito seu dono e senhor e com a tesoura que estava a seu alcance sobre a penteadeira ela o furou como quem estraçalhasse um tomate podre. Saiu correndo pelo corredor, nua mas coberta por um lençol azul, as pontas dos dedos sujas de sangue, entrou no meu quarto feito uma tempestade e disse agora eu sei que existem muitas coisas que estão sobre a terra e abaixo do céu mas não vemos porque achamos que elas não existem até a gente descobrir. Eu disse Hamlet e ela quis sorrir mas não conseguiu. Disse vou embora amanhã bem cedo. Eu falei que não. Então, na geografia do seu ventre, descobri que o amor é doce e puro feito uma fruta-do-conde.


M.V.F., 23-6-09

domingo, 5 de abril de 2009

Trilhos Urbanos

Desço do trem na estação da Luz e quero me parecer com um estrangeiro. Assim não desconfiarão do meu passo hesitante, do meu olhar viajante, esse teto, essa torre, esse cheiro quente de tanta gente que passa, que entra, que sai – estou invisível. É quase noite e vão diminuindo as chances de: talvez dar algum sentido a minha vida. A tarde é amarela e fosca como aquelas tardes de antes, todos estáticos nos quintais (embandeirados?), nas varandas, nas ruas, como quem esperasse a noite para voltar à vida tão sem poesia do cotidiano. A tarde é a mesma mas a fumaça negra vai ferindo o amarelo doce quindim pessegada como um veneno e ergue-se personificando velhos bruxos no vento. É o centro da melhor cidade da América do Sul, a procela de concreto parece tão distante e tão próxima: sou náufrago e vou jogar meus versos para que nadem até lugar seguro. Do branco cirúrgico das janelas, arvoram cabeças do fim da tarde, do fim do nada, tudo está bem.

Depois que eu trem partiu voltando para os subúrbios eu pude ver: o rato morto. O trem que o matou ou já estava morto? ou apenas dorme? Os ratos vão roendo os dormentes dos trilhos e algum dia todas as linhas vão parar, os ratos vão roendo no subsolo da coisas, a podridão do noturno das coisas. Eu poderia encostar minha mão no rato, talvez ele esboçasse reação, me olhasse e eu seria caridoso com essa figura da criação, roedor de olhos fogueados, eu o acolheria em meus braços. Mas posso pisá-lo esmagá-lo reduzí-lo estraçalhá-lo. Como quem se livra de uma praga urbana, um mal inclemente à saúde e ao conforto. (Mas não há areia e tampouco o mar. Como pisá-lo assim racionalmente? Meu Deus, se existe o perdão o reclamo eu como quem reclama uma parte do corpo).

Vejo o rato e chego a acreditar que ele apenas repousa depois da exaustão de um dia de trabalho. Todos são ratos. Unanimemente todos querem: chegar mais cedo em casa. Meu desejo é apenas ficar. Ratos famintos vão me circundando: sou todo uma armadilha perigosa a eles. Este que passa ao meu lado agora chama-se: Emervaldo, uns 45 anos, certamente menos que 50, na boca 26 dentes de ouro talvez colocados num estabelecimento qualquer da São João, pernambucano ou alagoano, cabelo ensebado, jaqueta jeans esbranquiçada, dois olhos muito grandes e vivos – ele também olha o rato. Ao lado dele, uma mulher olha o chão e pestaneja. Se eu pudesse. Se eu pudesse abraçá-la, não como quem abraça o rato, mas como quem abraça um amigo. Essa mulher cinzenta a quem não é permitido sentir, sonhar (ou sonha?), mas apenas aguentar. Forte fraca. Porque a noite vem galopando a multidão aumenta. João Maria Antônio José Emervaldo Eunice Macabéa Olímpico.

O rato intacto me dói – cada vez mais algo semelhante a uma solução se mostra impossível. Me dói saber que Emervaldo e a mulher do lado se demorarão a chegar. Nos subúrbios horizontais já será o momento em que o silêncio é inquebrantável – todos já dormirão. O rato é tranquilo porque a morte redime – depois dela culpa e vício se mostrarão pequenos ou inúteis demais. Aniquilar a culpa de parar a cidade por um momento – eu preciso não sentí-la. Objeto não identificado na via: um óculos, um relógio, um celular, duas notas de cem reais. Desculpe o transtorno senhores passageiros estamos trabalhando para resolver o problema. (Vou fazer uma canção de amor para lançar num disco voador). Posso explicar a Emervaldo que. Ou me desculpar pela inconsequência do ato ainda não cometido (é necessásrio cometê-lo antes que o tornem crime), mesmo querendo secretamente que ele me segure, me tome com seus braços tão impregnados da força do dia, e me diga que: não. Porque não se poder fazer, porque não é permitido. Mas eu preciso, diria eu a ele, minha vida faz tanto sentido quanto essa estação, os trilhos terminam em algum lugar, não sei onde este termina, mas todos os trilhos do mundo terminam em algum lugar e deve ser o fim de todas as coisas, de todos os caminhos, mas os ratos vão roendo e o fim está próximo pode ser aqui mesmo e eu.

Entanto todos se calam quando veem que outro trem se aproxima

Na gare da Luz, eles estão satisfeitos e felizes: a máquina reluz abortada do escuro. O trem cintila. O trem trabalho, a força total. Trem magnético futurista (o motor tudo tramará?). Torpe ele treme, tenta tocar outro trilho atônito. Trem último, a torrente te teme (eu o temo também). Trem tanto – sua magia vai triturando o chão. O trem que traz e que leva. Sumindo por detrás da serra, eu ainda me lembro. O trem não pode não deve não sabe escolher. Tento tocá-lo. (ele é frio e silencioso).

Salto – e não há mais tempo de corrigir a estranheza do salto. Aos poucos, sinto que vou umedecendo, mudo e líquido, os trilhos da noite escura.


(4.4.09)




sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Carnaval

se é carnaval
e a lua insiste
mesmo sozinha
em imitar o dia
prefiro a sombra
o silêncio existe

me deixem fora
dessa euforia de três dias.

(Pra que cantar, Nuno Ramos)

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Nunca mais os enfeites

Há muito tempo que não apareço aqui no blog e tenho minhas razões para isso. Prometo voltar a publicar, não porque eu acredite que haja uma massa de leitores aflitos pela volta dos meus textos (e realmente não há), mas sim porque PRECISO mesmo rolar umas palavras soltas nesse espaço que é, de certa forma, todo meu. E, ademais, ultimamente as coisas (=vestibular) têm me deixado tão atarantado, que não garanto literatices sempre, nem textos muito criativos ou bem feitos. Sem muitos rompantes poéticos. É que eu acho minha vida tão sem-graça que sinto necessidade de enfeitá-la. Pois bem; vamos a ela sem os enfeites - e você acabou de ganhar uma frase pseudo-machadiana.


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Primeiro, preciso dizer que estou de FÉRIAS. Acho que nunca esperei tanto por férias, por um respiro, por uma volta à superfície tranqüila, por mais efêmera que seja. Estou vivendo, nos últimos dias, a mais perfeita mordomia: tenho lido só o que eu quero (como é bom!), assistido só ao que eu gosto, ido só aos lugares que eu costumo ir e, acima de tudo, dormido mais de dez horas/noite. É pra cristão nenhum botar defeito.

E hoje à tarde, no auge de um domingo ausente de sentido (como todos os domingos), resolvi largar-me numa ociosidade bastante produtiva: sentei-me no chão, abarquei com as pernas uma enorme caixa de papelão e resolvi separar jornais e revistas. Decidi separar os jornais dos últimos meses para ler, recortar as colunas do Cony e do Ferreira Gullar da Folha Ilustrada, ler a Bárbara Gancia (que está ficando cada dia mais sem graça) e o José Simão. Incrível: tenho um secreto prazer em ler notícias antigas, até porque, depois de acontecidos, a nossa visão dos fatos é bem mais crítica. O que há é que, nos últimos dois meses, não tive tempo de ler jornal. Não tive tempo de nada, nem de viver direito, sequer ler jornais. E se mal tive tempo de ler o suplemento político, imagine o cultural - e imagine ainda o fútil!
Mas estive organizando os jornais e revistas. Recortei o que me era interessante/útil, mas também me prendi ao que fui encontrando de divertido. Folheei várias revistas Isto É Gente da minha mãe, que datavam de 1999, 2000, 2001... Li as matérias mais interessantes e as menos também. E sinceramente não entendo porque a Isto É Gente, ou seja lá quem for, organiza uma festa dos "50 mais sexies (sic) do Brasil"? Acho legal ver gente bonita ("gente bonita é um tição/ que atiça a vida do coração", já cantava a Marina Lima), e acho degradavelmente engraçado ver as pessoas se prostituírem por duas linhas, corpo cinco, num pasquim qualquer. Mas precisa fazer uma festa? Coisas da Isto É. Só não consegue ser pior que a Caras, com aqueles quatrocentões falidos, que tiram fotos nas coberturas do Morumbi, sem um puto no bolso.
Fui empilhando as revistas, que eram incrivelmente muitas, e quando já estavam organizadas, voltei a olhar as que mais me chamaram atenção. Particularmente, adoro entrevistas (esses dias, vi um livro muito bom na Fnac, algo como “A Arte de entrevistar”, com entrevistas históricas de Freud, Drummond, Greta Garbo, F. Scott Fitzgerald... eu, como sempre, sem dinheiro, não comprei...). Então fui ler as entrevistas da Isto É Gente, com pessoas até razoáveis, do quilate de Jô Soares (não sou fã, mas sorrio levemente com ele nas minhas noites sem sono), Fernanda Montenegro, Regina Duarte (?), Marília Gabriela, etc.
Assim como gosto de entrevistas, gosto também de biografias. Ou seja, gosto de vidas, de histórias contadas. Se gosto das ficções, gosto ainda mais da realidade, por mais monstruosa ela possa parecer às vezes. Assistam ao “Edifício Máster”, do Eduardo Coutinho e verão o que alguém chamou de “força misteriosa da vida”. Mas é fato que gosto de vidas contadas. E não deve haver coisa melhor do que ter vida, ter essa matéria fluida, essa matéria-vida, que os escritores vão buscar todos os dias, porque talvez a verdade não seja, de todo, convincente. Poder contar a sua própria vida, desde que esta seja realmente apreciável, é motivo de orgulho. Na entrevista da Fernandona, ela falou do TBC, do Grande Teatro Tupi, do regime militar, dos momentos difíceis, e entre as belas palavras dela, adocicadas an-to-no-má-sias do tipo “primeira-dama dos palcos”, “rainha da dramaturgia”, etc. Na entrevista do Jô, a repórter perguntou: “Jô, me diga uma coisa que você não saiba fazer”, ao que ele respondeu que não dirigia bem. Prosaico, no mínimo.
Mas aí chegamos ao cerne existencial do dia, ao que me moveu a escrever esses texto e o que tem me perturbado desde que empilhei as revistas Isto É Gente. Todos nós sabemos que a Fernanda é realmente a primeira-dama dos palcos, que ela é um poço de talento, sensibilidade e inteligência, mas daí que no pequeno perfil biográfico que sucede à entrevista, dizia que aos 16 anos, ela passou num concurso para ser rádio-atriz na Rádio MEC e ali conheceu jovens da UFRJ, que integravam um grupo amador de teatro. Com 20 anos, foi a primeira atriz contratada pela TV Tupi de São Paulo e o resto a gente sabe. A questão toda que surge disso é: tenho 17 e não há nenhum concurso de radialista para mim. Nem para ser radialista nem para ser nada.
Essa experiência com as revistas só me deprimem: se por um lado não sou e nem serei um dos “50 mais sexies (sic) do Brasil, do universo, da galáxia...”, não sei se minha vida será contada algum dia em algum almanaque por aí. Se será suficientemente interessante, trágica ou bonita, admirável ou reprovável, para ser impressa em algum jornaleco, em corpo cinco. Se será preciso enfeitá-la demais, cobri-la de palavras bonitas, de panos, véus. Ou então, serei apenas mais um rosto, desses que se perdem nas estradas, nas ruas, cuja vida não é interessante ou interessável: existem, sobrevivem, lutam, amam. São bem mais felizes assim, creio eu. 
O Caio tem um conto em que a personagem decide que no dia seguinte ia começar a fumar. O amanhã é o dia das grandes coisas. Preciso fazer algo amanhã, amanhã no sentido metafórico: preciso fazer algo realmente bom logo. Acho que havia uma propaganda da Mackenzie que falava disso, de fazer alguma coisa notável. Ou é só “Keep Walking” mesmo? Não sei. Mas preciso começar a construir minha biografia, a moldar essa matéria mole que é a vida, intangível, mutável.
Se alguém tiver uma sugestão de “ação notória”, avisem-me. Já é hora de fazer algo e quebrar a letargia. Não que eu tenha complexo de mediocridade. Mas sei que para nascer, é preciso quebrar o ovo.
Então, lá vamos nós. Sem os enfeites, a partir de hoje. Nunca mais os enfeites. 




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Para começar a semana, “Pétala” na voz da Gal Costa. Bálsamo. Nesse fim de semana, ouvi umas oitenta vezes. SÉRIO. É absurdo, é lindo demais.


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Abraços,
Marcos Vinícius Ferrari

sábado, 22 de março de 2008

Presente

O que te dou é apenas
sombra do que querias
Dou-te prosa, e o desejo
era dar-te poesia.

(Affonso Romano de Sant'Anna)

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Nossa Garota

Trazia sempre aquele amuleto contra o peito e os cabelos louros despencando em cachos, os braços roliços, gordos e curtos, o rosto redondo, vermelho. Os olhos, duas esferas cristalinas soltas na cabeça, ela virava e os olhos balançavam ocos como num copo vazio. Olhos vivos que captavam tudo a sua volta. Conseguia observar o vôo da mosca que lhe rondava o corpinho, e sem sequer desviar um milímetro o pescoço já avançava as mãos silenciosas para aquele estalido seco e enfim matar a mosca, espatifada e sagrada, uma pasta negra. E gritava feliz que havia matado a mosca, seus olhos ainda vivos, agora rutilantes e jubilosos.
Quando recebíamos visitas, ela gostava muito de ouvir as conversas. Sentava-se no chão e fingia estar distraída, talvez com um quebra-cabeças de mil peças, as Pirâmides de Gizé. Ou a Opera House, só tinha que ser algo grandioso e difícil, peça por peça com a precisão de uma assassina de moscas. Enquanto eu conversava com Alberto ou Vera lá estava a nossa garota, com os ouvidos de pé não para entender, mas sim procurando o primeiro erro, o primeiro deslize, a primeira incongruência. E então, do alto da pirâmide sem o topo – onde está a última peça, meu Deus? – saltaria ela, graciosa e lépida, abrindo a boca, mostrando os dentes pequenos de pérolas e leite e dizendo não, não é assim. Poderia muito bem fazer acertadas correções quando o assunto era Beethoven, Godard ou Tchecóv. Ou ainda imprimiria sensatas opiniões sobre política, sobre a Guerra do Peloponeso ou ainda sobre a arquitetura gótica. A fala mansa, os olhos viajando nos olhos do outro como se absorvesse uma misteriosa substância, como se absorvesse de tudo uma silenciosa revelação.
Vera, espantada, nunca cansava de perguntar quantos anos você tem? Ela respondia nove. E Vera repetia o gesto, olhava para mim e ria, meu Deus, o que você deu para a tua filha? Falava tua, hábito do sul. Nascera e vivera em Pelotas, a princesa do Sul, perto da casa da mãe da Glória Menezes, ela dizia. Alberto já não se espantava tanto com a própria afilhada, que cada dia sabia mais. A cada dia que passa, ela sabe mais e mais, ele dizia. Concordava satisfeito passando as mãos nos ombros largos de Alberto e dizendo foi muito difícil, você sabe, nossa garota é especial. Ele também dizia o mesmo a Cecília, você deu a luz a um gênio!
A verdade é que nossa garota já nasceu sabendo. Nasceu com plena consciência do mundo e quando o médico, trajando aquele avental verde-claro, que ainda guardo mesmo impreciso e desbotado na memória, quando o médico conseguiu enfim tirar a bebê e levantou-a no meio da sala de parto segura pelos pequenos pés eu vi ao redor dela uma placa tão grossa de chumbo, minha filha vai sofrer, eu pensei e desmaiei. Quando acordei algumas horas depois, uma enfermeira magra de cabelos brancos me abanava com uma prancheta, não se preocupe, é normal os pais desmaiarem na hora do parto, é normal, é normal. Minha filha vai sofrer, tentei falar antes de desmaiar mais uma vez batendo a cabeça contra a parede.
Cecília disse que me viu desmaiar e que ficou bastante magoada por quase três meses seguidos ao nascimento de Clarice. Por que Clarice?, ela perguntou. Queria Carolina (por causa da música do Chico) ou Marina (por causa da música do Caymmi), que vivia cantarolando pelos cantos enquanto grávida, Marina morena você se pintou. Clarice, eu disse, é meu ultimato. E é irrevogável. Engrossei a voz, fechei a cara, acariciei com discreta emoção aquela barriga, aquele globo de promessa, aquelas varizes, o feto aprendendo a respirar e quando eu vi meus ouvidos, meu nariz e minha boca e eu todo estava colado àquele regaço onde descansava uma célula, depois várias células, depois um projeto, um corpo, uma vida. Clarice! Levei duas semanas para convencer Cecília a adotar definitivamente o nome Clarice. Disse ela inicialmente que Clarisse soava melhor. Melhor ainda seria a Clarissa, do Érico Veríssimo, disse Vera que sempre fixava violentamente os olhos azuis no interlocutor desavisado quando falava de algo do sul. Sustentei Clarice. Em homenagem a Clarice Lispector, eu dizia, e forçosamente suplicava que aceitassem esse nome sem nenhuma ressalva ou alteração ortográfica. Insisti, li trechos de Clarice no café da manhã e no jantar, trouxe fotos, veja como era bonita, veja.
Consegui ao fim de árdua batalha. Logo que decidimos o nome, decidimos também que Alberto e Vera seriam os padrinhos. Clarice, claridade em francês, clarté, clair, clarté... E por achar Clarice um nome forte, eu decidi que faria algo para que nossa garota dignificasse-o, fazendo dele uma elevada e sacrossanta missão como uma emissária da luz que se põe sobre os homens e suas cabeças, a claridade restante, a vaguidão dos astros distantes. Mas ainda não sabia como, que meios?
Certa vez cheguei mais cedo em casa e vi minha mulher deitada sobre a cama entretida lendo uma revista de astrologia, veja aqui, ela disse, se tudo der certo nosso filho nascerá. Nosso filho?, eu perguntei sentando-me e apropriando-me da revista de nome A pessoa e os signos. Cecília balbuciou algumas palavras, disse que torcia para que nascesse um garoto, mas se Deus. Se Deus mandasse uma garota, tudo bem, amaria da mesma forma e com a mesma intensidade – e acariciou a barriga sorrindo. Fui folheando a revista e ela pôs-se atrás de mim massageando-me as costas e dizendo que se tudo desse certo, o bebê nasceria em junho. Colocando uma pequena margem de erro, poderia nascer entre a última semana de maio e a primeira de junho, sabe o que isto significa? Distraído com a revista não prestei atenção à pergunta que me foi repetida, sabe o que isto significa? Que seria de Gêmeos e seria a civilização em pessoa, a criatividade e a inteligência, entende? Sorri afoito, mesmo sem entender as reais expectativas de Cecília, aquela Clarice pequena já sobrecarregada de astros e dum misticismo ridículo. Virei as páginas da revista sem muita vontade até ver um espalhafatoso quadro de geminianos famosos, Machado de Assis, Sartre, Chico Buarque, Fernando Pessoa. E lendo aquilo arvoraram em mim idéias como galhos reptícios, que se esgueiravam pelo tecido de dentro, as letras pequenas da revista tornavam-se pastosas e a voz de Cecília parecia distante e lenta. Tive uma idéia genial.
No dia seguinte, pela noitinha, deitei-me ao lado da barriga – tão grande naquele momento – abri um livro de Fernando Pessoa e com a voz baixa recitei para a Clarice. Cecília perguntou-me o que havia, que é isso, que é isso? Fingi não ouvir e recitei uns dez ou doze poemas seguidos, com a mesma entonação séria como de quem adorna um vaso sagrado ou fabrica hóstias. No dia seguinte, na mesma posição, sobre meus próprios joelhos ao pé da cama alta, li João Cabral. Noutro, Baudelaire. Noutro, Camões. E assim se seguiu um hirto e indelével ritual, toda noite poesias diferentes, viajando nas atraentes palavras dum Rilke ou dum Maiakovski convidativos. Não faltou a sombria lucidez de Augusto dos Anjos (isto quando Clarice já tinha sete meses, que era para não chocar), a desilusão finalista de Bandeira, a natureza de Gonçalves Dias, o Carlos gauche. Rimbaud, mas em doses homeopáticas, como quem dá em gotas o sofrimento do mundo e sua consciência translúcida.
Além das poesias, submeti a Clarice em formação a música. Obrigava Cecília a prostrar-se uma hora por dia no sofá, embebida de Mozart ou Mendhelsonn, de João Gilberto ou Chet Baker, de Maria Callas ou Elis Regina. Sempre assistia ao ritual e imaginava satisfeito as ondas sonoras viajando no espaço e penetrando os poros, burlando a grossa fatia de pele que fazia o desenho da barriga, do ninho, da casa. E as ondas, lá dentro, evaporando e virando uma atmosfera azul-clara, uma atmosfera bebível que gotejava em Clarice, essa menina-promessa.
Enquanto Cecília ainda carregava nossa garota dentro de si, íamos semanalmente a uma ópera ou a alguma encenação de Shakespeare. Não houvesse ópera ou Shakespeare, algum concerto ou ainda em último caso, teatro moderno. Durante nosso sono, deixava em baixíssimo volume as Bachianas, ou algo de Chopin. Nas noites de verão, banhadas por aquele ar quente ininterrupto, Sarah Vaughan ou Milton Nascimento davam o exato tom.
Passei a alugar todas as semanas seis ou sete fitas, indo de Fellini a Mazaroppi, com pausas em Bergman, Ettore Scola, Nelson Pereira, Glauber e Antonioni. Cecília aparentemente se exauria e, por muitas vezes, tinha de parar a fita no meio porque a encontrava dormindo no sofá, especialmente durante os excelentes filmes iranianos e egípcios.
Foi numa quinta-feira nublada de junho que Clarice nasceu e não pude vê-la completa naquele despontar glorioso. Apenas vi o começo, aquele pedaço de sol despontando de trás dos montes rapados, aqueles cabelos dourados e ensangüentados, o rosto cansado. O rosto quase me dizia algo indecifrável, uma mensagem que hesitava em entender, que me detinha o passo para encostar a cara ao vidro da sala de parto, que me fervia por dentro e inflava de ar o coração. Aquele rosto sujo, aquele rosto de tão singela rudeza tinha qualquer intenção de me culpar. Como se me dissesse olha o que fez comigo, olha ao que me condenou, olha essa nuvem de chumbo que me asfixia. E olhei Cecília feliz, sorrindo de dor, com as pernas abertas jogadas para o ar, transpirava a Cecília, suor e sangue. Olhei Clarice, olhei Cecília, olhei o médico, olhei o avental verde-claro, olhei a luz, a luz, a lágrima e desmaiei.
Nossa garota estreou logo o berço, nacarado e lustroso, com bichos de pelúcia pendurados, girando e fazendo barulhos. E seu olhar tinha um pesar lúgubre, como das crianças mortas em seus caixõezinhos. Entretanto fingia não perceber isso e alardeava olha só como minha filha é uma princesa, como é linda, olha os cachinhos louros surgindo, encaracolados, caracóis. E pegava-a no colo e sentia-me aliviado se a via sorrir, se a via mostrar a boa nua e com as mãos tocar minha barba tão frágil a Clarice.
Os rituais ainda não haviam acabado, apenas começavam desta vez mais intensivos. Costumava ler na frente da nossa garota e gradualmente, conforme crescia, eu fui deixando livros de figuras para ela ler, desenhar ou colorir. Quando me dei por mim, já tinha quatro, cinco, seis anos. Sete, já lia dois livros por semana com paixão e ímpeto invejáveis. Tinha o próprio rádio em que ouvia as próprias músicas e selecionava com calma o que ouvir ou não. Gostava de revistas e quase todos os dias ela folheava os jornais procurando notas interessantes ou artigos bem ilustrados.
Era curiosa e adorava perguntar. Qualquer coisa lhe inspirava espantoso desejo de saber e, ao saber, possuir, deter, moldar, comer, beber e sentar-se em cima. Cecília sempre respondia a tudo o que sabia, o que significava uma pequena porcentagem das dúvidas da nossa garota que sempre vinha até mim, puxando a barra da minha calça e perguntando isso, aquilo, sempre com um dedo enrolando um cacho. O rosto vermelho, gostava de correr, para lá, para cá, para lá. Eu colocava Clarice no meu colo e alisava também seus círculos de cabelo, aqueles canudos finos de ouro sobre a cabeça. Se não entendia, argumentava, pedia que eu repetisse até que compreendesse e então saltava serelepe e rápida, sumia. Sumia, depois voltava, dourada. Quase voava, abria os braços e quase. Aquele amuleto que Vera havia trazido do sul e lhe dado, olha, guria, tu guardas esse amuleto que te dará sorte aonde tu fores. E Clarice ria com o sotaque cantado de Vera, parece que você fala como se andasse num cavalo, dizia nossa garota. O amuleto era uma pedra com três compartimentos de vidro, um azul, um vermelho e um amarelo, seria uma pasta dentro do vidro?
Clarice foi crescendo, oito, nove anos. Certa vez, na véspera do seu nono aniversário, ela entrou em casa impetuosa, num rompante. Chorava, chorava como no dia de seu nascimento, chorava como quando me olhou da sala do parto através do vidro frio. Peguei nossa menina no colo, passei minhas mãos por seus cabelos, o que houve, querida? Novamente, as meninas de sua escola haviam feito mais uma brincadeira de mau gosto. Chamavam-na anormal, estranha, idiota, louca, meu Deus, que ingênua crueldade a das crianças! Consolei-a, disse que não se sentisse assim. E citei Eclesiastes, que o padre sempre me dizia com a indolência típica dos padres velhos, aquela calma dos religiosos. “Quanto maior a sabedoria, maior o sofrimento; quanto maior o conhecimento, maior o desgosto”. E ao dizer isso, ouvi em minha cabeça as palavras do padre Getúlio, duras e irretocáveis. E tive a certeza de que eu era culpado, por que fora mostrar a ela o mundo por inteiro quando ela ainda não sabia de nada? Por que fui mostrar a vida a um ser que há pouco havia recebido seu sopro novo? Culpado, culpado, culpado, repeti, culpado. Eu, somente eu, causador da desgraça da nossa garota, tão angelical, tão intocável como o padre, como o padre que não vivera nada, mas conhecia os caminhos, os atalhos e os perigos.
E Clarice foi crescendo, entre sofrimentos e alegrias, entre poucos amores e poucas amigas, entre muitos livros e muitas palavras de conforto ou de martírio. Culpado, culpado, culpado. Uma infância e uma juventude no claustro observando um mundo torto e difícil. Nossa garota crescia, dez, onze, treze, dezesseis anos em velocidade absurda. Nossa garota era linda.
Uma semana antes de completar dezoito anos, nossa garota saiu de casa para nunca mais voltar. Saiu de manhã, enquanto dormíamos e o céu ainda cambaleava indeciso entre o negro e o azul, aquela imprecisa beleza de todas as manhãs iluminando o caminho de Clarice. Deixou um bilhete sobre a mesa, a nossa eterna garota, dizendo que precisava conhecer o mundo. E que a havíamos deixado com tanta vontade de conhecer esse mundo, esse mundo atrás das letras, dos sons e das cores, esse mundo possível sem escamoteações, sem proteções ou máscaras. Vocês me prepararam, ela dizia no bilhete, agora irei seguir o que me foi delegado. Passei o dedo em cima do delegado, escrito fortemente à caneta vermelha.
Abri a janela, o céu azul amarelado, tão indefinível que parecia inexistente. Acendei um cigarro, traguei-o até o fim, imaginei nossa menina andando por aí e procurando o mistério de todas as coisas com milagrosas lentes de aumento. Nossa menina voltará? Fechei a janela, enchi um copo de uísque e decidi ouvir Chopin antes de sair para o trabalho.


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Marcos Vinícius Ferrari.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Dura poesia concreta

Durante algum tempo, eu fiquei sem ouvir a canção Sampa, do Caetano Veloso. Ainda que sejam lindíssimos os seus versos iniciais (alguma coisa acontece no meu coração/que só quando cruzo a Ipiranga com a São João), eu achava o resto da letra um impropério, um exagero, uma ofensa a uma cidade tão grandiosa como São Paulo (que hoje, dia 25, completa 454 anos). Eu ficava pensando com os meus botões como o Rio pode ter Garota de Ipanema, Corcovado, Princesinha do Mar, Sábado em Copacabana, Eu gosto mais do Rio, Do Leme ao Pontal, dentre outras músicas consagradíssimas da nossa MPB, em sua homenagem e São Paulo não possuir alguma declaração de amor semelhante. Salvador também tem um rico cancioneiro a exaltando: São Salvador, Saudade da Bahia, Na Baixa do Sapateiro, Bahia minha preta, dentre outras. É claro que tanto o Rio como Salvador merecem essas e outras homenagem, são cidades lindíssimas e incríveis que foram perfeitamente descritas por Tom Jobim, Braguinha, Dorival Caymmi, Gilberto Gil... Também havia Para um amor no Recife, do Paulinho, Rua Ramalhete do Tavito, as belas músicas do Clube da Esquina sobre Belo Horizonte e até Deu pra ti (deu pra ti, baixo astral, vou pra Porto Alegre, tchau).
Contudo, ainda esperava uma música que surgisse arrebatadora para descrever o que São Paulo tem de melhor e não fazê-lo como Caetano, que captou o que de mais contraditório e estranho essa metrópole pode oferecer. E enquanto andava solitário (como em boa parte das vezes) pela República, pelo Arouche, pela avenida Paulista, pelo Ibirapuera, pela Liberdade, ia aumentando o meu sentimento de injustiça porque, querendo ou não, Sampa é imediatamente associada à cidade de São Paulo e vice-versa, e alguém de fora que ouvisse essa música acharia São Paulo uma cidade feia, pobre, suja, opressora. Não que isso seja de todo uma inverdade, mas poderia existir talvez algum lirismo exaltado e romântico com que Tom fez sua Corcovado (da janela vê-se o Corcovado, o Redentor, que lindo) ou o grande Caymmi a sua São Salvador (São Salvador, a terra do branco, mulato, a terra do preto doutor).
Levei certo tempo para compreender a essência de Sampa. Caberia a alguém talvez cantar a beleza ondulante do Copan, os reflexos que quase cegam na avenida Paulista, ou as fontes iluminadas do Ibirapuera. Mas não. Seria enganador, assim como é enganador resumir o Rio a Ipanema-Copacabana. E São Paulo não permite enganação, dado o fato de as coisas estarem eternamente expostas e visíveis. No entanto, ao mesmo tempo em que a ferida de São Paulo está aberta - a violência, a fome, a desigualdade -, sua beleza está, ao contrário, escondida. Ninguém ousa falar que o Rio, Salvador, Paris, Lisboa, Roma, Londres ou Amsterdã são cidades bonitas. Mas há quem hesite em dar o mesmo adjetivo à São Paulo. Porque isso exige demasiada sensibilidade e sobretudo atenção. São Paulo tem uma beleza incomum, que não é fajuta, não é redundante, não é escancarada. Uma beleza cinza, obscura, que reside na confusão, na mistura, no contraditório, no exagerado, no incompreensível, no absurdo até.
Eu sou sempre tocado pela beleza de São Paulo quando saio para fazer alguma coisa e estendo o passeio para contemplar sua arquitetura impensável e me encher de um incomensurável sentimento de possibilidade que emana das linhas do Copan do Niemeyer, ou da indescrítivel sensação de encontro ao andar pela São João observando ao fundo o Banespa que vigia imponente os transeuntes desavisados. Isso é loucura, mas me atinge em cheio. Porque talvez eu tenha um pouco mais de sensibilidade, de atenção ou, o mais provável, de amor por São Paulo. Um amor quase-cego, que faz me admirar até os detalhes mais inesperados mas que também me revolta quando vejo a cidade maltratada e abandonada, como andou nos últimos anos.
Várias experiências em São Paulo, várias observações, constatações e espantos nessa terra-mãe me fizeram enfim perceber que Sampa do Caetano é uma definição absolutamente perfeita de uma cidade desigual, torta, cinza, concreta, dura, crua - mas que é nisso que reside sua beleza-feia, sua estranha composição, seu irresistível charme e sua indiscutível importância.
Hoje ouço Sampa sempre e me dá uma sensação de estranho orgulho não só de viver em São Paulo, mas como o de partilhar de Caetano essa epifania que é a compreensão de uma cidade que de tão estranha chega a ser bela, que de tão concreta chega a ser abstrata. Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso - assim diz a letra.
Poderia eu arrolar aqui os números de São Paulo, a quantidade de pizzarias, a quantidade de padarias, os quilômetros de linha de metrô, que a rua Oscar Freire é a oitava rua mais cara do mundo e coisas similares Mas não é preciso. A grandiosidade de Sampa está nas suas esquinas duras e concretas, no seu ar levemente modernoso, no jeito do paulistano, na sua composição quase nova-iorquina (o bairro dos libaneses, dos japoneses, dos armênios, dos alemães, dos coreanos, dos nordestinos), nas suas avenidas largas, no vidro polido dos arranha-céus, nas calçadas com o formato do estado de São Paulo.
Dito isso, finalizo com um trecho de Sampa: "é que Narciso acha feio o que não é espelho/e a mente apavora o que ainda não é mesmo velho". Poucos Narcisos encontrarão a magia oculta de São Paulo se não se despirem do que Caetano chama de "outro sonho feliz de cidade". Aqui está tudo de pernas pro ar, irreconhecível, estranho, necessitado de compreensão, escavação, observação. Aventurar-nos-emos por essas veredas tão atraentes de Sampa para descobrir-lhe o real e incalculável valor. Novos baianos te podem curtir numa boa, novos baianos passeiam na tua garoa...


(Parabéns, São Paulo!!)

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Marcos Vinícius Ferrari
25/01/2008



(Abaixo, tem um texto antigo meu, sobre o incêndio do Joelma, em São Paulo...)

Joelma

Em fevereiro de 1974, o suntuoso Edifício Joelma, localizado na Praça da Bandeira, centro de São Paulo, foi vítima de um incêndio de proporções nunca antes vistas na cidade. Morreram cerca de 180 pessoas.


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Vou pular, vou pular!, eu gritava a plenos pulmões, apoiava-me na sacada de concreto coberta por pequenos azulejos amarelecidos, o fogo sobre eles, o fogo em mim, estou pegando fogo! O incêndio, o edifício inteiro em chamas, placas grossas e úmidas de madeira chamuscadas caindo sobre as cabeças e eu no topo observando com o olhar um morto indolente a cidade de plástico, aço e vidro. Da calçada colorida e estreita, via gente, ouvia apelos, não faça isso! e choravam pela minha morte ainda não consumada. Nos meus estertores, doíam as queimaduras, meus olhos incinerados pela cáustica substância e por dentro eu todo afogueado como se bebesse fogo líquido. Créc, créc, o fogo impiedoso, natureza voraz, Inferno.
Acordei. Maldito sonho! Já faz quase dez anos que tenho esse mesmo sonho, mas não é sempre e sim esporádico, às vezes fico alguns meses sem sonhá-lo e, meu Deus, o Senhor não sabe o alívio que é não acordar sobressaltado com as mãos lúcidas procurando queimaduras inexistentes em meu corpo magro; sem o sopro invisível e branco em minhas narinas; sem a rigidez silenciosa dos olhos com medo, meu Deus, por que me abandonaste? Quem disse isso foi Jesus na cruz, lembro-me do catecismo, lembro-me? A hóstia sagrada, recebê-la era como mastigar papel velho. O vinho que bebi escondido às vésperas da comunhão me desceu rascante – fogo líquido -, acho que ainda estou queimado até agora, por que me abandonaste?
Contei o dilema do meu sonho para o Zé, ele também é mendigo, costuma dormir na praça da República, às vezes está na calçada da avenida Ipiranga um pouco à frente, por que você não vem dormir aqui na República, perguntou-me, eu vacilei, dividíamos um pão com manteiga na ocasião que nos fora dado pelo português dono de uma padaria na rua do Arouche, chamava-se Manuel Coutinho. Coutinho, repetia. Dizia que vinha de um nobre conquistador de Portugal, ele sempre repetia o nome, esqueci-me. Eu e o Zé comíamos ouvindo-o, ele gostava de ajudar os moradores de rua, que Deus o guarde onde quer que ele esteja. Morreu com seis tiros enquanto fechava a sua padaria. Seis tiros, o primeiro na perna, o segundo e o terceiro no braço, o quarto no peito, o quinto no pescoço, o sexto na cabeça, pronto. Uns diziam que foi assalto, outros vingança, outros. Cidade perigosa. Devorávamos os lanches que Coutinho nos dava com fome de bárbaros ou neandertais, fome louca de devorar até um porco inteiro, ou um boi, melhor um boi que comer porco sempre me fez um mal danado.
Aceitei o convite do Zé e saí da praça Clóvis em direção à praça da República, levei dois cobertores meus já desgastados – consegui a muito custo numa loja da rua do Oriente – e quem foi atrás de mim – o único – foi o Pingado, um vira-lata, foi o Everaldo podre de bêbado que o batizou assim, fica repetindo Pingado, Pingado, Pingado, o cachorro. Certa vez tinha dormido na alameda Glete e quando acordei estava em cima de mim esse Pingado, com os olhos atentos e claros, os pêlos já esverdeados, bastardo! Foi me seguindo, mostrando a língua velha e porosa toda esbranquiçada, lambeu-me, cachorro bem vadio aquele, mas gostava de mim, onde estará agora? Depois que migrei para a República, nunca mais vi Pingado. Sei que me encostei às escadarias do metrô República, dormi mais rápido do que o usual, mas o sonho. Daquela vez, eu chegava até o parapeito em chamas e ameaçava me jogar, todavia eu me jogava. Encostava minhas mãos calejadas no bloco de concreto, projetava meu tórax para frente, sentia meus pés saírem do chão, meus olhos saltavam de órbita e pareciam chegar ao chão bem antes do resto do meu corpo, lançava-me. Fosse noite, confundiriam-me com uma estrela, eu que seria apenas uma placa fina de fogo tingindo o céu com uma ardida vermelhidão e aquecendo as possíveis e impossíveis atmosferas, o vinho. Minha hora de estrela. Estrela cadente, diriam apontando o dedo para o corpo caindo, façamos um pedido! Mas não, não era noite, era dia e as nuvens de algodão liquefaziam-se e moldavam-se formando uma escultura interessante: uma mão estendida. Deus? O vento. Queria o Paraíso, estivera uma vez na rua do Paraíso procurando emprego, bem próximo à avenida Paulista, quero o Paraíso de Deus, estivera esperando a vida toda. Estava bem próximo do chão, ouvia um som neutro que era o som múltiplo das vozes em prece, o chão, o asfalto se aproximando em velocidade assustadora, o negro buraco lamacento na rua, o vento violento, a luz!
Acordei com a luz forte da lanterna do policial, acorda! acorda! Chutou-me. Alisou-me sem carinho com o cacetete. Xingou-me, aviltou-me, eu cabisbaixo recolhi minhas coisas e adentrei a noite correndo, poças de água suja nas ruas. Caminhei pela São Luís ainda assustado, isso já me havia acontecido antes, na rua dos Guaianases um policial fez ainda pior comigo, tirou minha roupa, pisoteou-a com aquelas botinas marrons de lama e bosta, cuspiu em mim como se eu fosse um bicho ou menos, na escala evolutiva eu havia parado em algum patamar desconhecido, o dos mendigos, o dos maltrapilhos abandonados em São Paulo, filho de uma puta! eu gritei, bastardo, corri nu até a rua Helvétia na escuridão aveludada cheirando a amônia, cheiro de mijo me deixa nauseado.
Mas havia sido diferente. Eu quase tocando o redemoinho quente, tudo sedução e mistério, e a luz violácea em minha cara, os dois dedos grossos do policial abrindo meus olhos, me deixe morrer em paz, eu gritei embebido no delírio. Creio que o policial não me ouviu. Acordei com um pé no sonho e outro na noite. Antes de virar mendigo, eu achava que mendigos não sonhavam. Dormiam e pronto. Desde quando você é mendigo?, perguntei ao Fúlvio, nome bonito para um cara tão feio. Não sei, ele respondeu, acho que é desde sempre. Desde sempre?, indaguei . Minha lembrança mais antiga sou eu dormindo, ainda criança, ele disse, no largo do Paissandu, eu dormia enquanto as luzes do Banespa se apagavam, eu via tudo com nitidez, tão alto, tão próximo, lembrança mais antiga. No Paissandu há aquela igreja de nome esquisito, toda ela é esquisita, qual é mesmo o nome, Fúlvio? Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, ele disse, toda cor de abóbora. Achei estranho os “homens pretos” no nome da igreja.
Fúlvio eu encontrei um tempo atrás dormindo embaixo do Minhocão, perto da praça Marechal Deodoro. Dormia feito criança enquanto, acima dele, na bandeja de concreto e ferro, passavam a toda velocidade carros e ônibus. Tão perto das janelas dos prédios, abrir a janela e engolir a fumaça negra e asfixiante, a fumaça, o fogo! Zé me perguntou, depois de lhe contar meu sonho, se havia alguma razão, algum trauma, alguma história. Relutei, mas contei-lhe, lembro-me, estávamos na rua Florêncio de Abreu, o sol a pino e calçadas até vazias, eu vou lhe contar, Zé, vou lhe contar.
Quando eu cheguei a São Paulo, comecei, eu desci na estação da Luz e procurei um ônibus que descesse a Ipiranga e a Consolação, eu precisava ir até Pinheiros, rua Mourato Coelho, prometeram-me um emprego bom num escritório de lá. Nada, nada. Tudo desabando, céu cinza, nublado e distante, nunca o céu estivera tão distante de mim e dos outros, indefinível, intangível, fechara-se sem sorriso e sem lágrima. Eu estava no ônibus e percebi que havia um movimento exagerado de pessoas na Consolação, mas eu achei tão normal, não sabia nada de São Paulo, esse monstro do Atlântico de concreto, entende? Todos que estavam no meu ônibus desceram apavorados, eu fui junto, tive medo e angústia, o que está acontecendo?
Era primeiro de fevereiro, véspera do meu aniversário, véspera do dia de Iemanjá, nasci dia dois sob o signo de Aquário, tinha uma tia louca por signos, doida de pedra mesmo, morreu solteira num asilo de Araxá. Fui seguindo a multidão que se dirigia para a rua Major Quedinho alcançando a rua Santo Antônio e, meu Deus, como queria esquecer, como queria esquecer, dormir e não me lembrar mais, limpar a poeira de memória no cérebro com sabão e esponja, esfregar até sair completamente o menor vestígio, mas eu não consigo. Era 1974. Eu vi o edifício Joelma em chamas, parecia que eu lambia os rostos banhados de lágrimas de todos ali: sentia na minha boca gosto de sal puro. Fumaça preta, homens pretos precisavam de uma igreja. E vi um, dois, três corpos caindo numa velocidade imperceptível aos olhos. Gritavam, urravam. Helicópteros riscavam o céu e arranhavam os ouvidos com o bater ávido da hélice rápida, hélice rodando, rodando, o pouso! Bombeiros. Água, água, água para apagar o fogo, o fogo que parecia eterno, que podia consumir a cidade inteira passando de prédio para prédio e em pouco tempo transformar tudo num Inferno, fogo e dor, lágrimas salgadas.
A uns metros de mim, um corpo estremeceu-se todo no concreto, a matéria reduziu-se ao nada, que é de onde viemos e aonde vamos, aonde? Ah, Zé, eu chorei como se fosse comigo, como se fosse real, Zé. Depois, corri para um quarto de pensão que aluguei na rua Rego Freitas, morei ali por quatro meses. No quinto mês fui posto na rua por falta de pagamento. Meu dinheiro acabava rapidamente. Não mais arranjei trabalho decente, Zé, nenhum.
Não nasci mendigo, estou mendigo, Zé, não sei até quando, e sei lá se eu suporto. Olha, há gotas de concreto em meus olhos. Há fogo em meus órgãos. Eu sacudia o Zé, exasperado, fogo, fogo. A cidade convertida em Inferno, sal e fumaça. A cidade iluminada quando pela primeira vez dormi na rua, alameda Cleveland, praguejei contra aquele frio europeu e os gritos foram abafados pelo som do trem passando quase ao meu lado, um vagão, dois vagões, três vagões.
Trinta anos na cidade. Mais de trinta. Durmo e acordo mal, quando como, o faço com pressa e gana animalesca, ando muito sob o sol pedra de ouro falsa, o céu límpido, o ar etéreo da mistura dos hálitos, o cheiro do craque que fungam a exaustão. Certa vez encontrei três meninos de menos de dez anos cheirando craque nas escadarias do viaduto do Chá, ao lado da sede do poder, jardins lá em cima. Dei-lhes uma bronca; não me ouviram. Quando os encontrei novamente na rua São Bento, não sei, tive uma vontade louca de chorar, de me lavar inteiro, na rua São Bento não há luz: paredões homogêneos de concreto filtram sem piedade as ondas de luz e calor, tão tímidas frente às camadas de pedra.
Digo que depois de contar tudo ao Zé ainda sonhei o mesmo sonho várias vezes, contudo uma só vez ele foi diferente. Quando eu enfim fugia das labaredas e me lançava sem medo na rede invisível eu não era mais em essência a brasa da destruição: era uma pena flutuando na cidade. Do alto, via a cidade quase rósea, pousava na abóbada da nave da Catedral da Sé, voava, quase tocava o chão na Vinte e Três de Maio, voava como se nunca tivesse voado, como se tivesse descoberto a funcionalidade da asa que nascera comigo, voava.
Acordei. Esfreguei os olhos com as mãos cerradas, luzes frouxas iluminavam a rua, rua Aurora, eu li na placa, dormi encostado na porta de um bar. Ao longe, dois policiais se aproximavam, duas bolas de cor branca brincavam no ar negro, duas lanternas acesas. Levantei-me e dobrei a Conselheiro Nébias com um medo tremendo. Desapareci no redemoinho das nuvens pretas e rumei para o Paissandu. Até que a avenida São João não fica tão feia à noite.



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Marcos Vinícius Ferrari

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Louco anônimo

“Estive doente
doente dos olhos, doente da boca, dos nervos até.
Dos olhos que viram mulheres formosas
da boca que disse poemas em brasa
dos nervos manchados de fumo e café.
Estive doente estou em repouso, não posso escrever.
Eu quero um punhado de estrelas maduras, eu quero a doçura do verbo viver.”


(Versos de um louco anônimo, encontrados num sanatório de Porto Alegre e transcritos pelo repórter Caco Barcelos)

Hortelã Adocicado

Ângela dizia que durante o sono eu falava o nome da Vilma e ria me revirando na cama, Vilma, Vilma. Nem durante o sono, nem mergulhado no sonho, nem assim nesse momento em que estou tão virado para dentro consigo privacidade. Privacidade, ela dizia estalando os dedos a cada sílaba e entrava no banheiro, recolhendo as peças jogadas no chão e jogando para o alto, num gesto de desabalada loucura, olha isso, olha isso, olha isso, e mostrava a minha velha Lee deitada horizontalmente no vaso sanitário, suja, com nódoas de amarelecidas quase eternas, tatuagens na calça raramente lavada, não tenho tempo de mandar para a lavanderia, eu disse e voltei a dormir enfiando com violência minha cara no travesseiro até sentir aquele cheiro branco da fronha, cheio de vômito, sabão e água de colônia. E ela adentrava o banheiro como quem adentra um castelo mal-assombrado num parque de diversões. Como eu posso usar um banheiro desses? como?
Acordo, abro a janela, e sinto o gosto de hortelã adocicado das manhãs nessa cidade, esse cheiro rascante de vidro molhado, mijo e álcool que a cidade tem. Meio mareado, cambaleio, vou da janela até a cozinha, apóio minhas mãos na mesa envidraçada e observo o contorno úmido dos meus dedos no vidro. Abro a geladeira e lembro que preciso comprar leite, ovos, farinha, coentro, salsicha (para comer com arroz nas noites preguiçosas) e pão. Comprar também incenso. Olho o turíbulo sobre a estante descansando, Vilma adorava incensos e tinha um jeito todo especial de acendê-los e fungar-lhes o cheiro como quem prova pratos de olhos vendados. Ela deixou vários incensos aqui no apartamento, junto de algumas bijuterias e calças. Vilma ficava bonita de jeans, apesar de gostar muito de usar saias e sandálias altas só para ficar mais alta do que eu quando saíamos para fazer compras no Eldorado ou na rua Conselheiro Crispiniano, comprar rolos de filmes, rolos e mais rolos que ela gastava em segundos fotografando tudo o que via, mas tinha predileção por fotos de flores, pássaros, edifícios, crianças e nu. Chamava amigos e amigas para posarem mas todos recusavam de imediato vendo o ridículo da proposta. E Vilma não entendia, mas não entendia mesmo essa barreira moral à arte, essa barreira hipócrita que se desfazia como uma torre em ruínas a cada flash anunciado, Vilma não entendia. Ela também me convidava sabendo da redundante renúncia, vinha com a câmera pendurava no pescoço cujo visor grande descansava sempre em meio aos seios, eu não vou ser fotografado por você, Vilma, não, Vilma, não, Vilma, Vilma.
Há várias fotos aqui pela mesa, pela parede, no quarto, na lavanderia, lindos pôsteres que Vilma fazia. Ela dizia que gostava da tendência assumidamente barroca que a sociedade assumia, entende? Fotografou certa vez um punk entrando no metrô e um skinhead saindo. Achou aquilo o máximo das suas simbologias, porque mesmo os seres mais discrepantes e discordantes entre si acabariam se rendendo a um ponto comum, onde se interscecionariam seja por falta de opção, seja por coincidência. Quase como fotografar Hitler escorado no muro das Lamentações. Eu dizia, não viaja Vilma, mordendo um pedaço quente de pão com queijo prato. O skinhead correu atrás de Vilma, deu um chute em sua perna que quase a derrubou, gritou sua piranha vagabunda me dá a porra da câmera, e nada. Nada de tendência barroca, nada de intersecção. Vilma ainda relutou, disse que era profissional, que trabalhava para um jornal, não quis ofendê-lo, eu não vou publicar sua foto, implorava chorosa, pressionando contra o ventre a máquina, como um filho grávido de outro filho, a máquina grávida de uma fotografia. O skinhead não quis nem saber: com suas botas enormes e pesadas, começou a pisar em Vilma, machucando-lhe os seios, a cara, pulava, esmagava seus joelhos como quem apaga um cigarro no asfalto. Tirou-lhe a máquina, rodopiou no ar seguro pela tira com que Vilma a pendurava no peito e jogou longe, aquele cubo negro dando voltas no céu, pelo amor de Deus, implorava ainda Vilma ensangüentada, me deixa ir me deixa ir me deixa ir pelo amor de tudoquevocêtemnavida. Eu que andava por aquele quarteirão notei a aglomeração de pessoas formando um irregular círculos em torno de Vilma e de seu algoz, ajoelhado sobre seu corpo como que tentando estuprá-la. Com as mãos nervosas afastei as pessoas, derrubei algumas no chão e me coloquei na frente do skinhead de cabeça vermelha e suspensórios azuis, agora você vai ter o que merece. Sorri para Vilma que piscou para mim complacente e sensual, chutei os colhões do agressor, dei com minha mão fechada em seu rosto até fazê-lo cair ondulando no chão, como uma pasta vermelha e suja. Vilma ainda sorria, mas quando acordei assustado, dei de cara com a foto do punk e do skinhead no metrô, um entrando e outro saindo, a foto na minha escrivaninha defronte à cama.
Passo os dedos pelo turíbulo e quase saio para comprar muitos incensos, para a provisão do mês inteiro. Contudo, vejo a General Jardim cheia de gente e me desanimo. Ainda sinto sono mas não quero dormir, já são quase três. Desde criança, mamãe dizia que eu falava coisas durante o sono. Papai achava que era doença, só podia ser. Era como se dois fios dentro de mim houvessem se tocado e com o calor se fundido fazendo assim como que o que vinha do inconsciente fosse diretamente à boca, saindo como lama após a quebra de uma enorme barragem. Meus sonhos! meus medos, minhas loucuras, minhas dores, tudo falado em bom tom para todos da casa ouvirem. E acho que, pela manhã, olhavam-me desconfortáveis, eu tentava me lembrar do que teria dito na noite anterior, que queria comer a Cecília, que a professora havia se transformado numa gigante toda verde e sem dentes que corria atrás de mim com uma foice em chamas perguntando-me quanto era 7x8, me diga, moleque, me diga, 7x8. Toda noite antes de dormir ficava escabreado sabendo que, a qualquer momento, eu ficaria exposto sem controle, seria revirado ao avesso, traído pelo meu próprio sono, pela minha própria tranqüilidade. Queria não dormir e me manter retesado ao pé da cama em vigília ou talvez deitar-me com a boca cheia de esparadrapos que não permitissem escapar um sonho sequer, uma imagem surreal que fosse. Mas minha mãe logo alertou que eu poderia morrer sufocado durante a noite, assim como acontecera ao primo Júlio que engasgou à noite, e acabou asfixiado pelo próprio travesseiro. Primo Júlio sempre me assustou, aquela cara redonda, vermelha e cheia de espinhas já sem vida no travesseiro enquanto um pedaço de carne dançava na sua garganta, impedindo-o de respirar, de viver. Certa vez, ouvira papai falar ao Ernesto, empregado da fazenda, que alguém tinha matado Júlio, talvez seu irmão invejoso e finalizou citando Esaú e Jacó, sem atinar que o irmão assassino da Bíblia era Caim, que oferecera frutas do solo ao Senhor e este teria preferido a oferenda de Abel. À noite, acho que sonhei que meu irmão mais velho, Tadeu, corria atrás de mim pela fazenda carregando um cesto de vime cheio de frutas podres e jogando-as em minha cabeça e outras desvivam do alvo e caíam ocas no riacho. De repente, tudo escurecia e eu desmaiava no chão, como no quadro de Doré, observando somente a sombra de Tadeu lançando as frutas desprezadas pelo senhor, não me mate, Tadeu, não, Tadeu, não.
Tadeu nunca tocou nesse assunto, mesmo passados mais de vinte anos. É certo que ele ouviu e talvez nem tenha levado em consideração. Vilma achava Tadeu um cara estranho, sempre com aquelas camisas de flanela, a barba mal-feita, riscos de carvão, o costume de assoviar Glommy Sunday ou Sugar in my bowl enquanto as outras pessoas falavam. Ela disse que certa vez, enquanto dormia, eu pedia a Tadeu que não mais me jogasse as maçãs envenenadas em mim porque a serpente era mãe dele. Eu ri e contei à Vilma a história de que Caim seria filho de Eva com a serpente, que ela ouviu incrédula e risonha.
Parece que vai chover. Se Ângela estivesse aqui ela cozinharia algo com champignons, fresca até não poder mais, adorava colocar coisas aparentemente improváveis ou imiscíveis no que cozinhava. Sempre que vinha para cá trazia uma garrafa de vinho ou uma lata de marron glacé, sabia que eu adorava. Comíamos, bebíamos e para quebrar a rotina às vezes eu colocava um disco, ela perguntava se ela era fotógrafa, que tal ouvirmos Tom Jobim?, por que você ainda pendura essas fotografias ridículas?, Maria Bethânia?, o que é isso de cabelo vermelho na foto?, veja só um disco da Maysa, ela também gosta de nú artístico, é?, eu gosto tanto da Maysa, enfia essas fotos no seu rabo. Se fosse a Vilma, ela pediria para ouvir Edith Veiga, fungaria o cheiro do incenso e pediria Edith, faz-me rir o que andas dizendo, que te adoro e que morro por ti, não te enganes dizendo mentiras. Então, Vilma andaria descalça pela sala trançando os braços no meu pescoço, imitando a voz grossa e nasal da Edith, até parece impossível que um dia foste o homem sonhado por mim, esta cínica farsa de agora faz-me rir. E bailaríamos pisando nos pratos colocados no chão, lambuzando as solas do pés com aquele caldo de champignon, esbararíamos no sofá, e eu beijaria seu cabelo, seus lábios ainda teriam o gosto da tubaína e da empada de palmito que pedira pela tarde num boteco e os meus ainda teriam o gosto do marron glacé de lata, tombaríamos no chão como duas crianças mas ela desavisada encostaria com demasiada força a cabeça no velho assoalho de madeira. Sangraria um pouco pela boca e depois sorriria com os dentes avermelhados. Eu despiria a morta e incensaria lentamente seu corpo branco como que de cera e leite.
Acordo, abro a janela, e sinto o gosto de hortelã adocicado das manhãs nessa cidade.



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Marcos Vinícius Ferrari
21/01/2008

domingo, 13 de janeiro de 2008

Quase-quase


Eu tive, há alguns meses, o prazer e a honra de ver pessoalmente o brilhante jornalista e escritor Carlos Heitor Cony (1926-), por ocasião do I Salão do Jornalista Escritor, aqui em São Paulo. A palestra que ele ministraria no auditório começaria por volta das 18h no Memorial da América Latina. Contudo, quase meia hora antes, eu estava prontamente na fila que lentamente crescia. Eu já ficava impaciente quando vi um grupo de pessoas vindo em minha direção e logo reconheci, no meio das outras cinco ou seis pessoas, um senhor de cara gorda, bigode, bastante robusto, de terno cinza, amparado por uma mulher loura e por uma bengala. Conhecia o Cony somente por tê-lo visto algumas vezes no Programa do Jô e por fotos nos jornais - sem dúvida era ele ali na minha frente. A mulher loura segurava nos braços do Cony e pedia licença a todos. Foi quando notei que eu estava bem próximo à entrada da sala vip, para onde se dirigia aquela pequena comitiva. E não sei se é paranóia minha, mas eu recuei um passo para dar licença ao Cony e percebi que ele me olhou fixamente por um ou dois segundos. E ainda hoje guardo aquele olhar assustado, estranho, que o velho Cony me lançou, trazia a cabeça um pouco baixa e parecia exausto. Eu poderia ter pego em suas mãos, dito que era fã dos seus inúmeros romances (apesar de só ter lido um até hoje), abraçado-o, beijado-o, ajoelhado-me aos seus pés, dito que ele era um dos jornalistas nos quais mais me inspiro... Poderia ter feito mil coisas mas senti que aquele olhar incomum que Cony lançara (talvez não para mim, mas para a pessoa detrás de mim na fila, ou ainda um olhar geral para o hall do Memorial) me barrara instantaneamente. E fiquei gelado, feliz, satisfeito, diria até glorioso. Quando dei por mim, Cony já estava dentro da sala onde também estavam Luís Fernando Veríssimo, Ignácio de Loyolla Brandão, Moacyr Scliar, Elifas Andreatto, dentre outros jornalistas/escritores que haviam participado de atividades durante o evento (às quais eu havia também comparecido). Lá ele certamente foi bastante festejado e bastante abraçado até o momento em que começou a palestra.
Subimos todos para o enorme salão onde seria conferida a entrevista/palestra. Tratei de sentar-me numa das primeiras fileiras, ao lado do corredor. Não sabia eu que Cony sentaria-se justamente na minha direção num sofá colocado no palco, em linha reta com o meu olhar atento. Havia pelo menos mais 150 pessoas assistindo. Cony entrou (novamente amparado pela mulher loura), sentou-se com dificuldade e foi largamente aplaudido. A entrevista deve ter durado umas duas horas e por esses deliciosos minutos, fez-se sepulcral silêncio para ouvir as palavras daquele homem de 80 anos de vida, 60 de jornalismo e 50 de literatura. Todos ali no auditório (à minha exceção e de outros gatos pingados) eram apenas reles estudantes de jornalismo querendo absorver, em sua maioria, apenas informações meramente profissionais. Graças à Deus, Cony não se prendeu nisso e foi além: viajou na história do jornalismo brasileiro, desde os tempos de seu pai (o também jornalista, Ernesto Cony, que trabalhou por bom tempo no Jornal do Brasil) até os atuais, atenuando com certa nostalgia e glória os tempos amadores e quase artesanais do ofício de noticiar (que hoje, infelizmente, virou a indústria de noticiar). O tempo em que jornalistas todos se conheciam e faziam acordos em que um não poderia dar furo em outro (se um descobrisse algo, deveria compartilhar com todos). Tempo em que não se usava nem a máquina de escrever, tempo em que jornalismo era vocação e não opção, modismo ou comércio. Talvez alguns obtusos estudantes ali tenham se enfadado; eu, pelo contrário, fiquei encantado pela fala mansa (ainda que excessivamente carioca, arrastada, puxada nos érres), pausada, lenta mas firme e rija.
Cony falou também (lembro-me ainda muito bem) do seu primeiro romance, "O Ventre" (1958), com clara influência do existencialismo sartriano (dois anos antes de Sartre pisar em terras brasileiras). O livro foi premiado pela comissão do Prêmio de Literatura Manuel Antônio de Almeida (cuja banca contava com medalhões como Manuel Bandeira e Austrigésilo de Athayde), porém não pôde levar o troféu: era um romance forte demais. Essa força, que poderia ser traduzida como violência, agressividade, até mesmo exagero, seria mais uma vez exposta naquele que Cony disse (não só naquele dia, mas em várias entrevistas) ser o seu melhor livro: Pilatos (1974), romance cujo protagonista é um homem castrado que carrega seu pênis num vidro de compota, vagando pelo centro do Rio, representando o Brasil pobre e castrado de sua liberdade e de sua força após o golpe de 1964. Sobre o regime militar, Cony também teceu longos comentários durante a palestra, revelando suas várias prisões nos anos 60 e suas conseqüências.
Eu assistia ao Cony falando, mas lembrava daquele olhar, dos dois olhos negos e pequenos de Cony que tanto poderia simbolizar um simples "dá licença, moleque" ou algo mais, em que minha mente viajava buscando impossíveis conotações. O velho não me conhece, não sabe de minha paixão pelas letras, talvez desconfie da minha grande admiração por ele - por estar esperando para vê-lo falando num sábado, às 18h - e nunca me conhecerá, se por um acaso sair um livro meu daqui a alguns anos, ele não lerá, não quererá saber, sequer ouvirá falar... Eu ia repetindo isto, mas ainda estava encantado-desconfiado com o olhar estranho. Fosse Machado de Assis que passasse na minha frente amparado pela fiel Carolina, eu teria me jogado aos seus pés, lambido a sola dos seus sapatos e gritado ao mundo que meu blog tem um título que é, de certa forma, uma referência à sua obra-prima, e diria que sou seu fã, que ele é o melhor escritor dessa de língua portuguesa, que Eça de Queirós que nada! (Detalhe: Cony revelou na entrevista que ele estudou no mesmo seminário pelo qual Bentinho, de Dom Casmurro também havia passado e onde conheceu o amigo Escobar). Fosse Chico Buarque, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, fosse qualquer um desses também aproveitaria da proximidade forçada, atirava-me à porta da sala vip e trancaria a passagem, só deixo você entrar, Bandeira, se me autografar esse livro aqui (eu estava com algum livro que fui lendo no metrô, só não lembro agora qual era a obra). Faria isso com todos esses e até faria - com mais ou menos discrição - uma demonstração de carinho para o Cony não fosse aquele olhar pétreo, impaciente, quase me mandando, me obrigando, me impelindo a deixar-lhe livre a passagem, mas quem é esse cara para me dar ordens? Só por que ele é a estrela da noite? E quem é ele? Fosse algum astro de Hollywood, fosse um Guimarães Rosa, fosse um Proust, fosse um Mozart, vá lá, até entenderia e cederia aquele metro quadrado de chão para que ele pisasse e continuasse a caminhar com tranqüilidade para a sala vip. Mas o que esse escritor de terceiro mundo quis me ordenar com o olhar tão duro e tão seguro? Também eu poderia ter compreendido erroneamente. Poderia entender talvez como um olhar cúmplice, de quem conta um segredo ou, ainda, de quem não pode contar algo importante naquele dado momento. Talvez a loura estranha não pudesse ouvir a revelação que ele trazia guardada desde o Rio até desembarcar em São Paulo e que, ao me ver, talvez tenha necessitado contar, ou me avisar não sei de quê. Estava confuso e decidi voltar minha atenção à palestra.
Cony falava de suas leituras fundamentais (Machado), mas citou de forma bastante ambígua suas teorias sobre o Bruxo do Cosme Velho (Cony consegue provar por A + B que Machado traiu José de Alencar com sua esposa - que teria dado a luz ao fruto da traição, o também escritor Mário Alencar... E isso teria dado origem ao Dom Casmurro...Bem, depois posso expôr essa teoria maluca aqui no blog). A entrevista já findava e Cony passou a falar da necessidade da tristeza ao artista em geral, dizendo (trago ainda na memória): "Um homem feliz não faz uma grande obra. Um homem feliz não faria 'O mercador de Veneza'. Um homem feliz não faria a Nona sinfonia. Eu escrevo todos os meus livros na fossa mesmo". Foi bom ouvir aquilo de um escritor de tantas obras consagradas como "Pessach: a travessia" e "Quase Memória" - sendo este o único romance do Cony que li até hoje. Enquanto ele falava sentado na beirada do sofá, eu ia gradualmente lembrando do "Quase Memória", um livro delicioso que, pelo meus cálculos, li pela primeira vez no começo de 2005. Li, fiquei maravilhado e inclusive presenteei uns três amigos com exemplares desse livro. O auditório estava tão escuro (nas outras palestras do dia, havia mais luminosidade) e isso dava um tom ainda mais soturno à voz meio cavernosa do Cony. E se enquanto falava, Cony me localizasse na platéia e me olhasse de novo, ordenando-me aquilo que não entendi, soprando-me aquilo que não captei, ou simplesmente olhando perdido, vago e sem intenção alguma de me cooptar ou me coagir? E se ele, não sei, soubesse que eu escrevo ou tivesse visto meu nome da lista dos que queriam receber o certificado de participação no Salão (que, passados dois meses, ainda não chegou)? E se ele quisesse me dizer que eu continuasse, ou que eu parasse, que a profissão é dura, que tudo é pedra e barreiras? E se ele quisesse me dizer o mesmo que disse àquela entrevista que ele concedeu à Playboy:" jornalista é um peixinho de aquário, que faz gracejos; escritor é um peixe que tem toda a profundidade do oceano onde o sol não entra"? Mas se aquele evento justamente tentava achar o ponto de articulação do jornalista e do escritor como uma coisa só, fundida numa só coisa (que é justamente a coincidência de ambos talharem a palavra, ainda que para variados fins, seja na crônica, na reportagem, no romance ou na novela), num só valor para o qual convergiam todos os debates (que, agradevelmente monótonos, versavam sobre o gênero reportagem, sobre as biografias, sobre o caso-verdade, sobre jornalismo social, etc.). Então, o que queria Cony me avisar com aquele olhar tão certeiro que talvez tenha certeza de que não era tão somente um pedido de licença mas sim algo encaixado numa esfera maior a qual não compreendo até agora?
A entrevista acabou, decidi que não ia ficar para a palestra seguinte (Caco Barcellos), já era noite, tinha de pegar metrô e trem, e uma reunião familiar já me aguardava em casa. Não fui atrás do Cony, não fui levar sequer o livro que eu trazia em mãos (que livro era, meu Deus?) para que ele autografasse e tampouco fui tirar satisfações ou acertar minhas contas com ele. Apenas me retirei do Memorial, caminhando sozinho pelo pátio escuro, ouvindo o barulho dos trens de subúrbio que passavam alucinados ao lado, na estação da Barra Funda. Aqueles trens, aquela estação - que hoje está bastante modernizada e cheia de gente - já pertencera à antiquíssima São Paulo Railway e me fez lembrar de um episódio contado no livro "Quase Memória" de Cony. E sentado conforavelmente no metrô, fui recordando...

O livro "Quase Memória" é, segundo o Cony nos conta um quase-romance porque é despojado demais, memorialista demais ao mesmo tempo que é irrepreensivelmente ficcional. Isso faz dele uma obra irregular demais que Cony chama de quase-memória, quase-romance, quase-quase. Em termos editoriais, porém, esse livro não foi um quase e sim um grande êxito: pela época do seu lançamento, em 1995, vendera mais de 400 mil exemplares (fato bastante raro). O enredo se dá da seguinte maneira: Cony - o próprio, quem nos conta a história - recebe um pacote destinado a ele numa tarde no Rio de Janeiro. Inicialmente estranha aquele pacote, aquele embrulho, aquele nó dado perfeitamente no centro, o cheiro de alfazema e brilhantina, o peso, a letra com o destinatário ("Ao jornalista Carlos Heitor Cony"). Durante o livro, é esse pacote misterioso que conduz Cony a uma instigante viagem ao seu passado focado especialmente na figura do seu pai, já citado aqui, Ernesto Cony. Esse pacote faz a ponte entre o Cony-filho e o Cony-pai assim como o biscoito madeleine para Proust ou o Rosebud para o Cidadão Kane de Orson Welles. Com muita delicadeza, Cony-filho relembra (inventa?) casos da vida do seu pai, construindo assim um personagem de carga mítica, cheio de manias, trejeitos, peculiaridades que permitem ao leitor traçar o perfil perfeito do patriarca da família Cony e o seu legado que o narrador nos apresenta como "legado de tristeza, mansidão e fragilidade". O embrulho misterioso, que muito lembra a presença de seu pai, faz Cony deixá-lo intacto sobre a mesa, intocável, tentando encontrar através dele algum sentido palpável - o que vem com os casos protagonizados por seu pai, como o do balão roxo e branco, da "fábrica" de tintas, da morte do jacaré, da romaria para Minas Gerais, das mangas de cemitério, da recepção de Sacadura Cabral... Casos verídicos ou não que povoam a cabeça de Cony e montam, de forma fragmentada, a imagem do Cony-pai, controvertido, original, intenso e inesquecível.
Decidi reler este livro nos últimos tempos, aproveitando o fato de ter conhecido Cony e de ter recebido dele alguma mensagem ainda não traduzida por mim. E isto só aumentou o prazer de reler esta obra tão deliciosamente lúdica, tão carregada na memória pessoal e afetiva- bem do jeito que aprecio -, de linguagem simples, rápida, gostosa de se ler, apaixonante. Outro fator que orientou minha leitura para outros caminhos foi a entrevista que Cony deu (se não me engano, à Folha de São Paulo, jornal para o qual trabalha atualmente) dizendo que o livro não é um hino de amor ao pai, mas sim um pedido de desculpas pelo eventual desprezo com que tratava o seu pai na maioria das vezes. Uma tentativa de revisitar o passado e dar-lhe alguma dignidade, alguma humanidade, alguma maturidade. Tentativa não quase-alcançada, mas sim conseguida na plenitude, com honra e qualidade, com emoção e sensibilidade que emanam de cada palavra, com doses certeiras de nostalgia e mistério.

Enquanto relia "Quase Memória", sempre me vinha o velho Cony, 81 anos, metido naquele terno cinzento, a me fitar às vezes brutal, às vezes tão paternal, não sei. Talvez quisesse me informar o que realmente é o embrulho que literalmente desembrulha o protagonista e inicia as memórias. Ou talvez não quisesse dizer absolutamente nada, nem uma intimação, nem um elogio, nem uma saudação. E sim um olhar gélido e impessoal, desprovido de qualquer sentido ou intenção. Não que esse episódio tenha me tirado o sono, de forma alguma. Mas habitou um pouco a minha fétril imaginação e temperou a releitura do livro e temperará as possíveis e provéveis releituras que eu fizer. Às vezes até tenho idéias estranhas de mandar um e-mail à caixa do site oficial do Cony, no anonimato, dizendo que sei o que é o embrulho do "Quase Memória", dizendo que eu fiquei ofendidíssimo com a brutalidade daquele olhar ou que eu fiquei confuso com a confissão interrompida. Queria fazer esse tipo de terrorismo ridículo. Seria debalde. Vou é sonhar que Machado de Assis piscou para mim enquanto passeava no Parque Lage ou que Mario de Andrade me acenou de sua sacada na Lopes Chaves ou ainda que Drummond veio lépido descendo as ladeiras de Itabira para me cumprimentar e me oferecer um pedacinho de bolo de fubá.
Na verdade, o melhor seria justamente o oposto do pensamento do protagonista do livro (Cony-pai): amanhã não sonharei com essas coisas...

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"Quase Memória" - altissimamente recomendado. Dá para encontrar por preços módicos em qualquer sebo que preste. Sabem o que é bom? O "Sebo do Messias" na praça João Mendes, centro de São Paulo. O livro tem 213 páginas e os menos preguiçosos conseguem fazê-lo em uns três ou quatro dias. Boa leitura!

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Marcos Vinícius Ferrari
12/01/2008

sábado, 12 de janeiro de 2008

Quando os morangos finalmente mofam

Há algum tempo, quando eu estava passando por um momento extremamente difícil, encontrei de forma bastante inesperada (ele mesmo diz: "É preciso estar distraído, não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado.") a obra do escritor gáucho Caio Fernando Abreu (1948-1996). Até hoje trago com muito carinho as palavras ora duras, oras sutis, ora líricas, ora pétreas do Caio. Talvez isso venha justamente porque meu primeiro contato com sua obra está diretamente associada àquela necessidade tão urgente de um arrimo, de um porto-seguro, de qualquer palavra que me mantivesse de pé, inteiro, vivo. Todo dia tento ler um pouquinho, um conto, um trecho, uma frase que seja. E faz um tremendo bem porque no Caio as coisas são diretas, estão cristalinas, disponíveis, entregues. Talvez compreender Caio e toda a sua essência exija um pouco de sensibilidade e, sobretudo, um gauchismo meio exaltado. Ele escreve é para os tortos, para aqueles que vagam pelo mundo desamparados, sozinhos, cabisbaixos. Escreve para casmurros sem teto, sem lugar, sem origem, sem destino, sem sonhos. Porque a todo momento estamos desabando e nos levantando, trazendo de cada queda centelhas de dor, de desamor, de ódio, de esperança, de dignidade - trazemos é cada vez mais apurada nossa sagrada compreensão das coisas e das pessoas.
Caio exala em cada linha a sobriedade de quem viveu e sabe do que fala. Sabe dos perigos, das verdades, das inverdades, do que o Drummond poderia chamar de sentimento do mundo. Mesmo tendo morrido aos 48 anos e publicado o primeiro livro aos 20, desde sempre há em Caio o conhecimento e a vivência dolorosa de mundo fragmentado, mentiroso, angustiante, descrente.
Pena não poder conhecer Caio. Pelo que tenho lido, Caio sempre foi uma autor bem próximo de seus leitores e participativo, disponível, aberto. Ele diz que conheceu Clarice nos anos 70 e depois do encontro, quando voltou para casa, chorou a noite inteira por ter visto nela o peso, o sofrimento, a compreensão do mundo. Conhecer Clarice e mesmo o Caio causaria em mim a mesma sensação: essa sensação que descrevi, justamente a proximidade de auras tão iluminadas, tão densas, tão belas e tão sofridas. Tão calejadas. Tão refugiadas na palavra, que encerra toda a dor sem pedir nada em troca, afora oferecer-se ardente e cálida a quem lê. Esses são artistas natos, que buscam na manifestação artística o abrigo urgente. Tudo em Caio é tão urgente. Precisamos ler naquele instante, sem demoras, como se o texto em nossa frente derretesse e como se cada palavra se tornasse líquida e fosse preciso um gesto rápido para manter a folha do livro rígida, para não entornar em gotas o precioso texto. Para não desperdiçar o sagrado, o profano, o manjar que Caio nos oferece. Com tristeza e soturnidade, embora. Mas é como disse o grande Carlos Heitor Cony (ele disse isso na minha frente, numa palestra): "Para escrever é preciso um pouco de tristeza. Nenhum homem feliz faz uma grande obra."

Abaixo, estão alguns trechos do Caio que escolhi para mostrar um pouquinho (pouco mesmo) da grandiosidade de sua obra. Do bairro do Menino Deus, em Porto Alegre, para o mundo, eis o nosso eterno Caio Fernando Abreu:


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"Te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em tudo outra vez."

"Não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais auto destrutiva do que insistir sem fé nenhuma? Ah, passa devagar a tua mão na minha cabeça, toca meu coração com teus dedos frios, eu tive tanto amor um dia."

"O que eu queria era alguém que me recolhesse como um menino desorientado numa noite de tempestade, me colocasse numa cama quente e fofa, me desse um chá de laranjeira e me contasse uma história. Uma história longa sobre um menino só e triste que achou, uma vez, durante uma noite de tempestade, alguém que cuidasse dele."

"Quando um dia você vier a Paris, procure. E se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo."

"Que bom se fôssemos cavalos e corrêssemos por um campo de trigo, com papoulas nas margens."

"Tive vontade de sentar na calçada da rua Augusta e chorar, mas preferi entrar numa livraria, comprar um caderno lindo e anotar sonhos"

"Devia ser sábado, passava da meia-noite. Ele sorriu para mim. E perguntou:
- Você vai para a Liberdade?
- Não, eu vou para o Paraíso.
Ele sentou-se ao meu lado. E disse.
- Então eu vou com você."

"Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra."

"Tenho uma vontade besta de voltar, às vezes. Mas é uma vontade semelhante à de não ter crescido."

"Me ajuda que hoje eu tenho certeza absoluta que já fui Pessoa ou Virginia Woolf em outras vidas, e filósofo em tupi-guarani, enganado pelos búzios, pelas cartas, pelos astros, pelas fadas. Me puxa para fora deste túnel, me mostra o caminho para baixo da quaresmeira em flor que eu quero encontrar em seu tronco o lótus de mil pétalas do topo da minha cabeça tonta para sair de mim e respirar aliviado e por um instante não ser mais eu, que hoje não me suporto nem me
perdôo de ser como sou sem solução"

"Porque sempre se chega um momento em que até o bom se torna insuportável"

"Era sábado à noite, quase verão, pela cidade havia tantos shows e peças teatrais e bares repletos e festas e pré-estréias em sessões da meia-noite e gente se encontrando e motos correndo e tão difícil renunciar a tudo isso para permanecer no apartamento lendo, espiando pela janela a alegria ou tentando descobrir alguma lasca de carne nas sobras frias da galinha de meio-dia."

"Estenderam as mãos um para o outro. No gesto exato de quem vai colher um
fruto completamente maduro."

"De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria, em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã."


12/01/08

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Fragmento

HOJE ACORDEI BEM CEDO, abri as janelas, escancarei as cortinas velhas, puídas, amareladas, botei flores num vaso, coloquei Elizeth na vitrola, tomei um bom banho (gelado) e decidi que ia te escrever. Não para te afligir, como da última vez. Não para te desesperar, não. Quero te contar coisas bonitas, coisas cheias de esperança e de amor, transpirando qualquer sentimento bonito, nobre, exalando qualquer aroma simples e casto como o destas flores. Quero te escrever mineral. Gosto de te escrever como a água brota na pedra, musical e leve. Quero te escrever água, quero te escrever céu, quero te escrever bicho feroz, quero é te escrever sendo o mais simples e primitivo que eu puder alcançar. Não quero ser pesado como fui nas últimas cartas. Quero te escrever floco de algodão, de neve, pluma, vapor, hálito de drops de hortelã. Quero te escrever palavras líquidas.
Estou tão leve. Poderia só escrever esta frase, dobrar o papel em quatro, colocar no envelope e endereçar à Copacabana, você ainda está em Copa? Esses dias, ouvi a Bethânia dizendo que Copacabana cheira a gasolina e a batata frita, você tem noção disso? Fiquei tão louco com isso que à noite sonhei que o mar havia se tornado um grande depósito de óleo sujo. (Vontade de comer os pastéis da tua mãe, lembra?). Se eu te escrevesse apenas que estou leve me daria por satisfeito porque sei que é isso que você quer ouvir: que estou bem, que estou assim como era antes, que não estou pesado. Mas se me preparei é porque quero lhe contar mais. Eu dormi ontem pensando no que te escrever e fiquei rolando na cama elaborando mentalmente cada linha, cada palavra que seria meticulosamente colocada para te impressionar, para te pôr alegre, para te pôr feliz. Esqueci tudo, estou fazendo ao contrário do que planejei. A Clarice anotava tudo o que vinha na cabeça dela, até as coisas mais improváveis e absurdas. Seria bom se eu fizesse isso, mas não sei. Pela minha cabeça são muitas idéias, imagens e palavras lançadas ao mesmo tempo, chocando-se alucinadas, serpenteando-se em mim, colubrejando nem sempre muito nítidas, mas sim escuras e sujas, ôôô. Sou um vulcão prestes a irromper em lava ácida, prestes a gorfar de alívio – quem é mesmo que escreveu isso, meu Deus?
Tô leve, querida, insanamente leve. Tô tão tangível, tão disponível, meus poros andam tão abertos. Tô à flor da pele. Sabe o que é bom: chorar de beleza. Chorei muito de tristeza, chega, chega. Tô chorando enquanto leio um Drummond, uma Hilda Hilst ou um Quintana, não porque é triste, mas porque é belo, porque as palavras estão tão intimamente ligadas como no começo, como no reino das palavras onde a gente penetra e não sabe se sai, se fica, se se deixa enfeitiçar, se se afunda. No Drummond, eu não sei, tudo está num grau tão absurdo de complacência com a o reino mítico de onde surgiu a primeira palavra, o primeiro som, o primeiro grito. E eu choro porque é bonito, porque eu nunca conseguirei escrever aquilo, não só porque já foi escrito, mas porque não consigo mesmo, porque não sou digno, porque a mim me cabe apenas o direito de ler aquelas linhas com abnegação. Como sou abnegado, meu Deus.
Tô chorando até ouvindo RôRô. Choro ouvindo “Naquela mesa” da Elizeth, naquela mesa ele sentava sempre e me contava sempre. Choro porque a voz da Elizeth é tão grave, tão superior, tão madura, e ela está toda entregue a mim nessa canção porque ouço com a mesma atenção de quem ouve a primeira explosão. Chorei esses dias vendo uma cena da novela das oito. E na mesma medida que o belo me atinge em lágrimas, outras coisas têm me atingido com rompantes de felicidade. Eu te dizia nas cartas que. Não sei bem ao certo como dizia, acho que falava que ser feliz é uma ilusão. Pode até ser: mas é uma ilusão que faz bem, que conforta, que acarinha. Ontem mesmo fui comprar flores na rua do Arouche e fiquei inexplicavelmente feliz enquanto andava pela Ipiranga com aquele arranjo colorido, imponente, eu era pura magia e encanto, era importante e superior, não sei explicar. Eu estava inteiro e atracado àquilo tudo o que me cercava, grudado, pertencente, imantado, os prédios, os mendigos que me sorriam sem pensar, as pessoas que me olhavam sem pensar. Estou tão repleto de pequenos prazeres. De pequenos delírios, pequenas epifanias. Semana passada, decidi pintar meu quarto de azul celeste. Eu mesmo fui comprar as tintas, pedi ao Rôni (te mandou aquele abraço) o rolo, os pincéis e tudo quanto fosse necessário. E ao pintar, ao despejar sobre o branco o azul, ao tingir estas paredes tão minhas, tão cheias de marcas, eu sentia outra vez um prazer indizível, uma alegria de criança tão esplêndida como se eu estivesse criando o mundo, o céu, as aves, as plantas, as pedras. Isso só denota minha fragilidade, eu não pareço, eu fico firme, eu me faço de forte, ôô, eu não caio na arena por tão pouco. Mas me derreto com essas coisas tão. Tão não-sei-dizer, tão impregnadas, tão lúdicas, tão dentro de mim e de tudo o que sou.
Estou leve para amar de novo e quantas vezes for preciso. Estou leve até para sofrer de vez em quando. Estou esperançoso também. Um dia vou encontrar o grande amor, o grande amigo, um animal de estimação que não me morda, que não mije no meu sofá. Um dia ainda vou escrever um texto e dizer: isto sou eu, completo, traduzido, codificado, inteiro. Um dia tudo fará um enorme sentido de modo que as coisas vão girar na minha frente, ficar embaçadas, meu cérebro tremerá, sairá fumaça pelos meus olhos, sabe esses momentos de descoberta? Em que a gente fica todo arrepiado, do cabelo até o púbis, fica gelado, estremece, parece que vai cair. Como as personagens da Clarice. Saudades de ler Clarice, de me lembrar de você, das nossas jornadas. Eu sinto tanta saudade. Sou metade passado e metade futuro. Metade ontem e metade amanhã, metade o que passou, metade o que ficou.
Não sei se é porque é domingo, mas a cidade está tão calma. Há algum tempo não passa nenhum carro aqui na São Luís. Talvez o tempo tenha parado para que eu te escreva concentrado e atento a cada palavra, a cada idéia fugitiva. Esse azul me acalma. Logo pintarei também a sala, o banheiro, a cozinha, tudo de azul celeste. Meu céu, todo meu, em cujas nuvens posso me sentar, flutuar, se eu pudesse te enviar um pouco desse azul, um pouco dessa serenidade. Quero te enviar um pouco deste silêncio. Se pudesse, te enviava um pouco do meu cheiro, da minha saudade, do asfalto da São Luís, da minha pele, da minha alma, desse leite gelado que estou bebendo. Por que tudo é tão impossível? Por que em todos os lugares a ciência nos impõe barreiras e os homens nos impõem medos, tarjas, mentiras, traições, violências? Por que você está longe, por que meus amigos estão longe, por que está tão longe o tão almejado momento da revelação?
Alguém me disse uma vez que complico demais. Será? É que eu, querida, eu não sei dizer. As coisas me soam, em determinadas ocasiões, tão estranhas a mim. Me soam artificiais, plásticas, mentirosas, enganosas. Imponderável sentimento de exclusão, de sozinhez (Guimarães?), de ter sede sem ser feito de água. Não é sempre; é esporádico, momentâneo. Parece que estou morto e transito entre as gentes, mas ninguém me toca nem me vê. É como estar morto sem ter morrido. É como se o meu corpo parasse de funcionar como param as máquinas, mas sem parar. É a morte sem morte, é o amor sem amor, é a amizade sem amizade, é a ternura sem humanidade.
Mas não quero te confundir mais do que eu possa te confundir. Quero é te deixar bem, livre. Não ando mais pensando em morte. O Caio Fernando diz que a morte exige algum tipo de grandeza que eu simplesmente não possuo. Nem posso pensar em possuir. Eu quero uma morte simples, não vou mais tomar remédios, me encher com aquelas cápsulas para depois vomitar tudo sobre mim mesmo, vontade de abrir a janela e vomitar no mundo. Despejar na cidade o pior de mim: o que o meu próprio corpo rejeitara. Quando exponho o melhor de mim posso chocar com a mesma intensidade como quando exponho meu pior. Gorfar de alívio. Por que as pessoas têm demasiado medo do meu pior? Não machucarei ninguém, nem causarei náusea, nojo, repulsa, ódio. Muito menos pena. A grande magia reside no obscuro, no fundo de nós mesmos, no fundo mais fundo de nós. Posso ser claridade e obscurescência. Personalidade barroca, melíflua, luz e sombra, amor e ódio, paz e violência, o céu nas minhas paredes, o vermelho no meu sangue.
Mas estou bem. Acho que estou até feliz, satisfeito. A esperança antecede a felicidade. Vontade de tomar um uísque, de ler Rilke, de assistir Oito e Meio do Fellini, de tomar banho de cachoeira. Sou pura promessa. Viver dá uma agonia tão estranha. A vida é uma eterna agonia. Mas enquanto o vento vem me brindar pela janela, e enquanto esse azul das paredes é durável e quieto, eu torno essa aflição menor, diminuta, inexistente. Está tocando uma música tão bonita no apartamento ao lado. O som atravessando as paredes e me atingindo em cheio. Alguém como tu, assim como tu, eu preciso encontrar, alguém sempre meu que me faça sonhar. Sou uma pessoa tão musical. Digo, às vezes. "


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Marcos Vinícius Ferrari
08/01/2008