domingo, 30 de dezembro de 2007

Eu sou amor da cabeça aos pés

Em 1971, a baiana Gal Costa lançou o disco duplo "Fa-tal: A todo vapor", registro do seu show homônimo. O álbum é considerado um dos discos mais marcantes dos anos 70 e um dos mais preciosos registros da época conturbada e contraditória em que o Brasil vivia.



Conto para ser lido ao som de "Hotel das Estrelas", da Gal Costa.
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Peguei nas mãos aquele disco perfeitamente quadrado, passei entre meus dedos e aproximei-o à cara, senti-o com o nariz e a boca e as orelhas, ela ainda guarda esse disco. Não concebia o fato daquele disco ainda existir tão intacto, tão singelo, tão bem guardado naquela estante escura e enlutada. Tão reservado como se num invólucro. Retirei o long play de dentro de sua capa de papelão e ele estava negro como se o vinil ainda estivesse quente e pastoso. Quente ele estava, com os dedos fui refazendo seus círculos e suas marcas da agulha da vitrola, ela precisa trocar essa agulha que anda estragando os discos, já disse isso mais de uma vez. No centro perfeito, um círculo menor azul escrito Phillips, saudades da Phillips, eu suspirei e recoloquei o disco na capa.
Ainda o retinha nos braços quando Lucila voltou da cozinha e se espantou me vendo de pé diante dos seus discos, você ainda guarda o Fa-tal, Lucila? Ela titubeou, ensaiou deixar a bandeja com café em cima da mesa, se eu guardo? guardo sim, não vê ele aí nas suas mãos? Peguei nas mãos de Lucila, deixei o disco no chão, estava tudo tão escuro naquele dia em que entramos no teatro Tereza Rachel para vermos o show da Gal, tudo escuro e barulhento, tropeçamos num casal de maconheiros que trepava num canto do minúsculo teatro, vem! vem, Lucila! por aqui temos um assento, e fomos com as mãos dadas – como agora – entrando numa cápsula de vácuo, onde o tempo não existia ou ainda que existisse era ignorado e invalidado, veja, Lucila, é a Gal, veja, os cabelos, veja os paetês brilhando, veja, e apertei seus dedos finos e brancos, reparei suas unhas pequenas e roídas, você ainda rói as unhas, Lucila? Eu perguntei se você ainda rói as unhas.
- Claro que não – disse escondendo as mãos e pegando a bandeja de café – E não sei o que tem o disco da Gal. Faz anos que eu não o ouço.
Impossível que ela não se lembrasse do dia em que assistimos ao show Fa-tal. Se eu ainda me lembro como se fosse...Lucila, você não se lembra? era 1971 ou 1972? não me lembro ao certo acho que estou ficando velho, você estava com um vestido branco que deixava à mostra os seus seios, Lucila. Não disse. As palavras ficaram rodeando minha cabeça, hesitei, não disse. Certamente, ela se lembrava daquele verão quente e claro, quando ela morava em Ipanema e eu em Copacabana. Eu encontrei Lucila pela primeira vez num bar da avenida Atlântica, onde você mora? Ipanema e você? Copacabana. E fomos cada um para um lado. Reencontramo-nos alguns meses depois numa festa na casa do Ricardo, colega meu do curso de Direito.
- Você sabe por onde anda o Ricardo? – perguntei eu bebericando um pouco do café, amargo e ralo, parecia tinta. Lucila está cada dia mais feia, pensei.
- Faz anos que não o vejo – ela pegou o disco do chão e analisou sem carinho, sem emoção, sem nada – Deve estar ainda em Londres. Antes ele me telefonava, agora nem isso o bastardo faz. Se importa se eu fumar?
Ela ainda fumava. Fiquei intrigado com a pergunta, se eu me importo? Mas se estávamos na sala de estar da casa dela. Acendeu o cigarro, baforou e depois tossiu longamente, levando a cabeça a se encostar aos joelhos nus. Lembrou-me dos joelhos de Nara Leão que conheci no teatro Opinião, mas não vi se tinha os joelhos lindos que diziam que ela tinha. Se é que joelhos podem ser simples ou bonitos e não apenas joelhos, sendo isso talvez um elemento que encerre o ser humano na sua igualdade. Tive vontade de beijar-lhe os joelhos, ela esfregou despudoradamente o cigarro no cinzeiro pesado de cristal em formato de losango. Olha aqui, César, olha aqui, porra! Ricardo gritava urrando de dor, olha aqui o que aqueles putos fizeram comigo! olha! E ele abriu a camisa para me mostrar, no peito liso, as chagas. Eles me torturaram até não poder mais, mergulharam minha cabeça num tonel de água e óleo, olha aqui, César, enfiaram uma espiga de milho no meu rabo, César. Ele queria chorar mas não chorava, eu o abraçava com cuidado para não tocar nas queimaduras de cigarros. Ricardo contou que um torturador alto, louro, de barba, e olhos azuis – parecia alemão, César, alemão - acendia um cigarro, fumava lentamente e depois, com toda a fúria possível, desfazia o gesto vagaroso para enterrar a brasa no peito exposto, toma seu comunista de merda! Comunista, subversivo, comunista, subversivo, comunista! Olha aqui, César. Com as mãos percorri o abdome cheio de rosas de carne viva.
- Você sabe quem é que falava de rosas de carne?
- O quê?
Lucila não entendeu a pergunta. Decido refazê-la e elogio o café ou não? Não.
- Eu me lembro de um texto em que o autor falava que o cara tinha rosas de carne na perna, feridas enormes, uma doença, quem era o autor?
- Não sei, César, não sei! Mas acho que já li algo assim.
- Seu café está ótimo. Como sempre.
- Não é aquele conto do médico do Kafka?
Sim, Kafka. Rosas, rosas, rosas. A rosa que Gal trazia no cabelo, as pernas abriam e fechavam, ela empoleirada num banco tocando o violão com os dedos, teria ela também as unhas roídas? Parecia que não tinha unhas, mãos de criança. O violão.
- É, Lucila, é Kafka sim. Só não lembro o nome do conto. Eu li isso há tanto tempo. Li naquela época, você sabe.
- Eu era louca no Kafka – remexi na memória dela e isso a excitou um pouco. Largou a xícara no sofá e estendeu as pernas, os joelhos ainda mais perto de mim – Louca no Kafka, no Henrdix, no Caetano, em cocaína, no Carlos Castañeda, no Tales of power, fiz mil e uma viagens a Itxlan...
E riu. Eu queria mesmo era viajar nos joelhos, nas coxas. Gal era tão bonita, sua voz era tão melíflua, tão tangível, tão vaporosa que era possível estender a mão e talvez captar um átomo daquele mistério, daquela alucinada sedução, daquele fabuloso olhar de gata arisca. Lucila tinha cabelos enormes, era tão estranha e tão bonita. Não sei se reparava nos joelhos naquela época, na boca miúda e cor de terra. Quando cheguei da faculdade e vi os dois na cama, Ricardo ainda cheio de rosas no corpo se esfregando no lençol branco, morávamos os três no mesmo apartamento na rua Sá Ferreira. Bati a porta com toda a força e os dois, que não haviam notado minha entrada, interromperam-se de sobressalto. Eu desci correndo as escadas do pequeno edifício, merda, merda, mil vezes merda. Quis ter uma vareta em chamas para ir pontilhando Ricardo, sua cara, seu peito, suas costas, olha aqui, César, olha um escambal. Fui andando sem rumo até encontrar uma loja de discos em que entrei e pedi o Fa-tal. Era um disco duplo, estranho demais para a época. Não sei quantos cruzeiros custou o disco, mas me saiu bastante caro. Me vê também o da Elis que eu vou dar pra minha mãe, eu pedi, e comprei aquele em que ela está na capa toda de branco, esparramada numa cadeira, parecia no céu. Mamãe vai gostar, vai gostar.
- Esse disco da Gal eu comprei aqui mesmo em Copa. Numa loja bem fuleira, eu lembro. Foi meu acesso de fúria, fúria incontida como nos gritos da Gal, entende?
Lucila sacudiu a cabeça com força, dissimulando certa preocupação com algo que havia acontecido há mais de 30 anos. Passou as mãos pelos cabelos, recostou-se na poltrona, começou a encarar o teto fixamente, como se atentamente observasse o trajeto de uma formiga pelo teto branco. O lençol.
- Quando você se mudou daqui, deixou o disco. Foi antes ou depois de termos ido ver a Gal?
- Depois. Uns meses depois.
Voltamos a ficar em sepulcral silêncio. O apartamento em que ela estava vivendo era bem arrumado. Despojado, Lucila sempre adorou essa palavra, ai como a Gal é despojada. Enfileirados sobre duas mesas, havia dezesseis bibelôs em formato de elefante, azuis, vermelhos, roxos, brancos. Nas paredes, quadros que ela pintava. Mas, ainda pintava? Ela gostava de se drogar e pintar. Geralmente, eram homens e bichos, ambos nus, em alguma floresta tropical imaginária com lagos translúcidos e coelhos psicodélicos. Certa vez, fez um Abaporu fajuto e, no auge do porre, disse que havia feito uma obra para entrar na história. Os pés. Os joelhos.
- Quer mais café?
- Não. Estou tentando parar. Depois do cigarro, entende? Agora vou eliminar a cafeína.
- Não consigo eliminar isso aqui – disse acendendo com o isqueiro transparente o seu Malboro.
Começou a brincar com o líquido de dentro do isqueiro, olé, pra lá, pra cá, olá.
Peguei novamente o disco em minhas mãos. A boca da Gal enorme. Passei os dedos em cima dos lábios empoeirados. Depois que vi Ricardo e Lucila se amando, passei duas, três semanas, ouvindo o disco Fa-tal e gritando a toda altura, hey, mãe, isso faz muito tempo, hey mãe, isso faz muito tempo. Ou eu sou, eu sou, eu sou amor da cabeça aos pés. Vontade de chorar, de chorar pelos olhos e pela boca. Lucila gostava da Gal, gostava das músicas, mas não entendia minha estranha mania de ouvir o disco tantas vezes por dia e muito menos entendia o sacro ritual de retirá-lo da capa e, como o padre segura a grande hóstia para mostrar aos fiéis – o corpo de Cristo – eu segurava o disco, fazia-o viajar no ar e só depois o colocava na vitrola, repousando-o com respeito, machucando-o lentamente com a agulha dourada. Ricardo não gostava de Gal, nem dos outros baianos, comunista de merda, comunista de merda. Ricardo e Lucila ainda treparam mais vezes, eu acho, até que Ricardo saiu para o aparelho na Vila Isabel. Ele e os outros colegas foram ouvir Vandré na Vila Isabel, não se varre com vassoura, varre com ponta de sabre e bala de metralhadora. Para não dizer que não falei de flores, de rosas, Ricardo, você não tem medo? Eu perguntei sem esperar resposta. E nem ele respondeu, apenas congelou seus olhos negros e me olhou como se eu fosse um estranho. Olha, César, olha.
- Como anda São Paulo? – perguntou Lucila apanhando as revistas da mesa de centro e empilhando-as.
- Bem. Gosto muito de lá.
- Continua no mesmo apartamento?
- Sim.
- Nunca mais fui a São Paulo, nem sei como anda tudo aquilo... – e suspirou. Tem certeza que não quer mais café?
Respondi que não e balancei preguiçosamente a cabeça. Já era hora de ir embora. Antes de voltar, passaria na PUC para rever aqueles jardins na Gávea, tão lindos. Invadiram, os mesmos que abriram rosas no peito do Ricardo. O Rio é tão lindo. Olhar a cidade me acalma. Lucila ainda tem um rosto bonito, admito. Sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo. Achei que ela tinha uma rosa na boca.
- Foi um prazer te rever, Lucila. Quando estiver novamente no Rio eu apareço.
- Leva o Fa-tal. É meu presente. Toma, é pra você, César. Se desse eu fazia ate um pacote, um laço, imagina?
Abracei Lucila e acarinhei os cabelos amarfanhados, pesados, escuros. A minha honey baby. No hotel, dormi abraçado ao disco e sonhei que Lucila vinha me buscar no céu – o mesmo da capa do disco da Elis – e me estendia os braços. No lugar do rosto, uma enorme rosa vermelha. No lugar dos joelhos, duas suculentas maçãs. Acho que tocava “Mal Secreto” ao fundo.

Marcos Vinícius Ferrari
29/12/07

2 comentários:

nina g. disse...

A minha honey baby...

Marcos, não vou dizer que gostei, porque isso você já sabe.
Ficou LINDO, um texto que eu gostei de ler. É um texto como eu, feito de lembrança e devaneio.

E é raro alguma coisa aou alguém me fazer sentir que sou alguém, que sou eu.

Muito lindo, parabéns.

Anônimo disse...

Adorei o texto. Adoro Gal e o Fa-Tal é, sem dúvida, um dos melhores discos do mundo.
Parabéns! Continue escrevendo. Vc tem sensibilidade e competência para isso.