quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

"As meninas" (1973) - Lygia Fagundes Telles


(Vou colocar também umas dicas de leitura pr'ocês!)
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O ano de 1973 deve sempre ser lembrado como um ano de confusão e desordem na esfera mundial. No Chile, Augusto Pinochet incendiou a sede do poder resultando na misteriosa morte do ex-presidente Salvador Allende. A partir daí, iniciaria-se a longa e sangrenta ditadura do general Pinochet. Na Grécia, 24 estudantes eram mortos depois de manifestações contra o regime político grego. O populista Perón voltava ao poder na Argentina sem saber que desencadearia um golpe militar poucos anos depois. É em 1973 também que o petróleo sofre seu primeiro grande baque com o assustador aumento do preço dos barris, o que deixa o ocidente de cabelos em pé. Morriam Pablo Picasso, Tarsila do Amaral, Pixinguinha e Pablo Neruda. Despontavam os Secos e Molhados, o Dark side of Moon do Pink Floyd, Gal lançava o polêmico disco Índia e "O Bem Amado" era a primeira novela a cores do Brasil denunciando as irregularidades da fictícia Sucupira. Caetano lançava o experimental Araçá Azul.
As coisas não iam bem no mundo. Nem no Brasil. O general Médici era o terceiro presidente militar e havia conseguido, em quatro anos de governo, eliminar a guerrilha do Araguaia e boa parte das guerrilhas urbanas. O custo disso: torturas, mortes, desaparecimentos, exílios. Para tal, já existia no Brasil um largo aparelho de tortura constituído por órgãos como DOPS, Doi-Codi, DEOPS, OBAN...A Censura andava ativa, proibindo livros, músicas, filmes e peças de teatro. A televisão mostrava a que veio, firmando-se como principal meio de manipulação das massas. Enquanto mortes aconteciam nos podres porões, a televisão mostrava o Brasil colorido, moderno, que vivia o Milagre econômico e cada vez mais se aproximava do patamar de potência mundial.
O que poderia um escritor fazer em um ano tão cinzento como 1973? Calar-se diante da barbárie para salvar sua pele era a alternativa logicamente mais apropriada. Mas e se o risco era a melhor saída? Denunciar a miséria humana diante de um regime de exceção, denunciar o Brasil cada vez mais rico e cada vez mais absurdamente pobre, denunciar o absurdo, o impensável, o incocebível...Para isto, veio não um homem de coragem, que se dispusesse a enfrentar torturas físicas pesadas. Veio uma mulher de aparência rígida, alta, esguia, nariz reto, boca pequena, mãos inquietas, olhos negros e voz suave, calma, sutil. Não era jovem, não era líder estudantil: já tinha 50 anos e era mãe de um adolescente. Quem iria melhor traçar o perfil humano dos anos 70 no Brasil era Lygia Fagundes Telles com sua obra-prima As Meninas.

Para começar a escrever o livro, Lygia passou a observar os jovens amigos do seu filho que frequentavam sua casa. Eram tipos muito díspares mas que, entre eles, formavam certa homogeneidade. Três tipos foram filtrados para compôr as três protagonistas do livro, as três meninas: Lorena - a burguesa individualista e mimada -, Ana Clara - a drogada - e Lia - a subversiva comunista. As três estavam não só inseridas no mesmo contexto de ditadura como viviam num mesmo pensionato, cercadas de freiras misteriosas cujas vidas exalavam mistério e pecado.
O livro não tem um enredo muito fixo; ele vai sendo contado em fragmentos que ora focam Lorena e suas divagações sobre seu amor proibido; ora focam Ana Clara e seu sonho de ascenção social no meio dos delírios alucinógenos; ora focam Lia divagando sobre sobre a situação das américas. Porém, As meninas não é um livro essencialmente político, muito menos essencialmente esquerdista. É um livro que tenta apenas traduzir a atmosfera dos anos 70 através de seus tipos e da profunda análise psicológica de cada um. Cada menina é analisada e exposta, é possível viajar para dentro de cada uma, conhecer suas veredas, suas memórias e suas humanidades. Depois, é impossível não se apaixonar por Lorena, Lia ou Ana Clara. Ou pelas três.
Impossível mesmo é não se apaixonar por Lygia e pela sua obra, intensa, densa, rápida, trágica. Depois de ler o primeiro parágrafo, ficamos todos nós, leitores, presos a sua escrita delirante, perplexa e atual. É como sentar sobre um cavalo: depois disso, somos conduzidos por pastos indefiníveis sempre sobre o cavalo, cavalgando ágil, secreto, livre.
Para quem gosta de literatura, é obrigatório passar por As meninas. Para quem gosta de política e do contexto dos anos 70, é igualmente obrigatório. Ler este livro é quase o nosso atestado de cidadania: é como dizer que estamos atentos a todas as atrocidades já cometidas neste país e não permitiremos que voltem a ocorrer. É também nosso atestado de humanidade: somos Lorenas, Lias, Ana Claras. Somos todos seres perdidos em meio à complexidade de nossos dias. Somos seres em busca de tradução, de compreensão, de refúgios.
Boa leitura e boa viagem!!
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Esse livro pode ser encontrado em qualquer sebo decente por uns R$10 a R$15... Vale a pena cada centavo!!!
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2 comentários:

nina g. disse...

somos lorenas, lias e anas claras.

parabéns.

-D BOMDEMAIS!


beeijo

Unknown disse...

Só eu sei o quanto esse livro me mudou.

Ótima leitura, ótimo mergulho. Intenso;




(E ainda sou apaixonado pela Lorena)