domingo, 24 de fevereiro de 2008

Nossa Garota

Trazia sempre aquele amuleto contra o peito e os cabelos louros despencando em cachos, os braços roliços, gordos e curtos, o rosto redondo, vermelho. Os olhos, duas esferas cristalinas soltas na cabeça, ela virava e os olhos balançavam ocos como num copo vazio. Olhos vivos que captavam tudo a sua volta. Conseguia observar o vôo da mosca que lhe rondava o corpinho, e sem sequer desviar um milímetro o pescoço já avançava as mãos silenciosas para aquele estalido seco e enfim matar a mosca, espatifada e sagrada, uma pasta negra. E gritava feliz que havia matado a mosca, seus olhos ainda vivos, agora rutilantes e jubilosos.
Quando recebíamos visitas, ela gostava muito de ouvir as conversas. Sentava-se no chão e fingia estar distraída, talvez com um quebra-cabeças de mil peças, as Pirâmides de Gizé. Ou a Opera House, só tinha que ser algo grandioso e difícil, peça por peça com a precisão de uma assassina de moscas. Enquanto eu conversava com Alberto ou Vera lá estava a nossa garota, com os ouvidos de pé não para entender, mas sim procurando o primeiro erro, o primeiro deslize, a primeira incongruência. E então, do alto da pirâmide sem o topo – onde está a última peça, meu Deus? – saltaria ela, graciosa e lépida, abrindo a boca, mostrando os dentes pequenos de pérolas e leite e dizendo não, não é assim. Poderia muito bem fazer acertadas correções quando o assunto era Beethoven, Godard ou Tchecóv. Ou ainda imprimiria sensatas opiniões sobre política, sobre a Guerra do Peloponeso ou ainda sobre a arquitetura gótica. A fala mansa, os olhos viajando nos olhos do outro como se absorvesse uma misteriosa substância, como se absorvesse de tudo uma silenciosa revelação.
Vera, espantada, nunca cansava de perguntar quantos anos você tem? Ela respondia nove. E Vera repetia o gesto, olhava para mim e ria, meu Deus, o que você deu para a tua filha? Falava tua, hábito do sul. Nascera e vivera em Pelotas, a princesa do Sul, perto da casa da mãe da Glória Menezes, ela dizia. Alberto já não se espantava tanto com a própria afilhada, que cada dia sabia mais. A cada dia que passa, ela sabe mais e mais, ele dizia. Concordava satisfeito passando as mãos nos ombros largos de Alberto e dizendo foi muito difícil, você sabe, nossa garota é especial. Ele também dizia o mesmo a Cecília, você deu a luz a um gênio!
A verdade é que nossa garota já nasceu sabendo. Nasceu com plena consciência do mundo e quando o médico, trajando aquele avental verde-claro, que ainda guardo mesmo impreciso e desbotado na memória, quando o médico conseguiu enfim tirar a bebê e levantou-a no meio da sala de parto segura pelos pequenos pés eu vi ao redor dela uma placa tão grossa de chumbo, minha filha vai sofrer, eu pensei e desmaiei. Quando acordei algumas horas depois, uma enfermeira magra de cabelos brancos me abanava com uma prancheta, não se preocupe, é normal os pais desmaiarem na hora do parto, é normal, é normal. Minha filha vai sofrer, tentei falar antes de desmaiar mais uma vez batendo a cabeça contra a parede.
Cecília disse que me viu desmaiar e que ficou bastante magoada por quase três meses seguidos ao nascimento de Clarice. Por que Clarice?, ela perguntou. Queria Carolina (por causa da música do Chico) ou Marina (por causa da música do Caymmi), que vivia cantarolando pelos cantos enquanto grávida, Marina morena você se pintou. Clarice, eu disse, é meu ultimato. E é irrevogável. Engrossei a voz, fechei a cara, acariciei com discreta emoção aquela barriga, aquele globo de promessa, aquelas varizes, o feto aprendendo a respirar e quando eu vi meus ouvidos, meu nariz e minha boca e eu todo estava colado àquele regaço onde descansava uma célula, depois várias células, depois um projeto, um corpo, uma vida. Clarice! Levei duas semanas para convencer Cecília a adotar definitivamente o nome Clarice. Disse ela inicialmente que Clarisse soava melhor. Melhor ainda seria a Clarissa, do Érico Veríssimo, disse Vera que sempre fixava violentamente os olhos azuis no interlocutor desavisado quando falava de algo do sul. Sustentei Clarice. Em homenagem a Clarice Lispector, eu dizia, e forçosamente suplicava que aceitassem esse nome sem nenhuma ressalva ou alteração ortográfica. Insisti, li trechos de Clarice no café da manhã e no jantar, trouxe fotos, veja como era bonita, veja.
Consegui ao fim de árdua batalha. Logo que decidimos o nome, decidimos também que Alberto e Vera seriam os padrinhos. Clarice, claridade em francês, clarté, clair, clarté... E por achar Clarice um nome forte, eu decidi que faria algo para que nossa garota dignificasse-o, fazendo dele uma elevada e sacrossanta missão como uma emissária da luz que se põe sobre os homens e suas cabeças, a claridade restante, a vaguidão dos astros distantes. Mas ainda não sabia como, que meios?
Certa vez cheguei mais cedo em casa e vi minha mulher deitada sobre a cama entretida lendo uma revista de astrologia, veja aqui, ela disse, se tudo der certo nosso filho nascerá. Nosso filho?, eu perguntei sentando-me e apropriando-me da revista de nome A pessoa e os signos. Cecília balbuciou algumas palavras, disse que torcia para que nascesse um garoto, mas se Deus. Se Deus mandasse uma garota, tudo bem, amaria da mesma forma e com a mesma intensidade – e acariciou a barriga sorrindo. Fui folheando a revista e ela pôs-se atrás de mim massageando-me as costas e dizendo que se tudo desse certo, o bebê nasceria em junho. Colocando uma pequena margem de erro, poderia nascer entre a última semana de maio e a primeira de junho, sabe o que isto significa? Distraído com a revista não prestei atenção à pergunta que me foi repetida, sabe o que isto significa? Que seria de Gêmeos e seria a civilização em pessoa, a criatividade e a inteligência, entende? Sorri afoito, mesmo sem entender as reais expectativas de Cecília, aquela Clarice pequena já sobrecarregada de astros e dum misticismo ridículo. Virei as páginas da revista sem muita vontade até ver um espalhafatoso quadro de geminianos famosos, Machado de Assis, Sartre, Chico Buarque, Fernando Pessoa. E lendo aquilo arvoraram em mim idéias como galhos reptícios, que se esgueiravam pelo tecido de dentro, as letras pequenas da revista tornavam-se pastosas e a voz de Cecília parecia distante e lenta. Tive uma idéia genial.
No dia seguinte, pela noitinha, deitei-me ao lado da barriga – tão grande naquele momento – abri um livro de Fernando Pessoa e com a voz baixa recitei para a Clarice. Cecília perguntou-me o que havia, que é isso, que é isso? Fingi não ouvir e recitei uns dez ou doze poemas seguidos, com a mesma entonação séria como de quem adorna um vaso sagrado ou fabrica hóstias. No dia seguinte, na mesma posição, sobre meus próprios joelhos ao pé da cama alta, li João Cabral. Noutro, Baudelaire. Noutro, Camões. E assim se seguiu um hirto e indelével ritual, toda noite poesias diferentes, viajando nas atraentes palavras dum Rilke ou dum Maiakovski convidativos. Não faltou a sombria lucidez de Augusto dos Anjos (isto quando Clarice já tinha sete meses, que era para não chocar), a desilusão finalista de Bandeira, a natureza de Gonçalves Dias, o Carlos gauche. Rimbaud, mas em doses homeopáticas, como quem dá em gotas o sofrimento do mundo e sua consciência translúcida.
Além das poesias, submeti a Clarice em formação a música. Obrigava Cecília a prostrar-se uma hora por dia no sofá, embebida de Mozart ou Mendhelsonn, de João Gilberto ou Chet Baker, de Maria Callas ou Elis Regina. Sempre assistia ao ritual e imaginava satisfeito as ondas sonoras viajando no espaço e penetrando os poros, burlando a grossa fatia de pele que fazia o desenho da barriga, do ninho, da casa. E as ondas, lá dentro, evaporando e virando uma atmosfera azul-clara, uma atmosfera bebível que gotejava em Clarice, essa menina-promessa.
Enquanto Cecília ainda carregava nossa garota dentro de si, íamos semanalmente a uma ópera ou a alguma encenação de Shakespeare. Não houvesse ópera ou Shakespeare, algum concerto ou ainda em último caso, teatro moderno. Durante nosso sono, deixava em baixíssimo volume as Bachianas, ou algo de Chopin. Nas noites de verão, banhadas por aquele ar quente ininterrupto, Sarah Vaughan ou Milton Nascimento davam o exato tom.
Passei a alugar todas as semanas seis ou sete fitas, indo de Fellini a Mazaroppi, com pausas em Bergman, Ettore Scola, Nelson Pereira, Glauber e Antonioni. Cecília aparentemente se exauria e, por muitas vezes, tinha de parar a fita no meio porque a encontrava dormindo no sofá, especialmente durante os excelentes filmes iranianos e egípcios.
Foi numa quinta-feira nublada de junho que Clarice nasceu e não pude vê-la completa naquele despontar glorioso. Apenas vi o começo, aquele pedaço de sol despontando de trás dos montes rapados, aqueles cabelos dourados e ensangüentados, o rosto cansado. O rosto quase me dizia algo indecifrável, uma mensagem que hesitava em entender, que me detinha o passo para encostar a cara ao vidro da sala de parto, que me fervia por dentro e inflava de ar o coração. Aquele rosto sujo, aquele rosto de tão singela rudeza tinha qualquer intenção de me culpar. Como se me dissesse olha o que fez comigo, olha ao que me condenou, olha essa nuvem de chumbo que me asfixia. E olhei Cecília feliz, sorrindo de dor, com as pernas abertas jogadas para o ar, transpirava a Cecília, suor e sangue. Olhei Clarice, olhei Cecília, olhei o médico, olhei o avental verde-claro, olhei a luz, a luz, a lágrima e desmaiei.
Nossa garota estreou logo o berço, nacarado e lustroso, com bichos de pelúcia pendurados, girando e fazendo barulhos. E seu olhar tinha um pesar lúgubre, como das crianças mortas em seus caixõezinhos. Entretanto fingia não perceber isso e alardeava olha só como minha filha é uma princesa, como é linda, olha os cachinhos louros surgindo, encaracolados, caracóis. E pegava-a no colo e sentia-me aliviado se a via sorrir, se a via mostrar a boa nua e com as mãos tocar minha barba tão frágil a Clarice.
Os rituais ainda não haviam acabado, apenas começavam desta vez mais intensivos. Costumava ler na frente da nossa garota e gradualmente, conforme crescia, eu fui deixando livros de figuras para ela ler, desenhar ou colorir. Quando me dei por mim, já tinha quatro, cinco, seis anos. Sete, já lia dois livros por semana com paixão e ímpeto invejáveis. Tinha o próprio rádio em que ouvia as próprias músicas e selecionava com calma o que ouvir ou não. Gostava de revistas e quase todos os dias ela folheava os jornais procurando notas interessantes ou artigos bem ilustrados.
Era curiosa e adorava perguntar. Qualquer coisa lhe inspirava espantoso desejo de saber e, ao saber, possuir, deter, moldar, comer, beber e sentar-se em cima. Cecília sempre respondia a tudo o que sabia, o que significava uma pequena porcentagem das dúvidas da nossa garota que sempre vinha até mim, puxando a barra da minha calça e perguntando isso, aquilo, sempre com um dedo enrolando um cacho. O rosto vermelho, gostava de correr, para lá, para cá, para lá. Eu colocava Clarice no meu colo e alisava também seus círculos de cabelo, aqueles canudos finos de ouro sobre a cabeça. Se não entendia, argumentava, pedia que eu repetisse até que compreendesse e então saltava serelepe e rápida, sumia. Sumia, depois voltava, dourada. Quase voava, abria os braços e quase. Aquele amuleto que Vera havia trazido do sul e lhe dado, olha, guria, tu guardas esse amuleto que te dará sorte aonde tu fores. E Clarice ria com o sotaque cantado de Vera, parece que você fala como se andasse num cavalo, dizia nossa garota. O amuleto era uma pedra com três compartimentos de vidro, um azul, um vermelho e um amarelo, seria uma pasta dentro do vidro?
Clarice foi crescendo, oito, nove anos. Certa vez, na véspera do seu nono aniversário, ela entrou em casa impetuosa, num rompante. Chorava, chorava como no dia de seu nascimento, chorava como quando me olhou da sala do parto através do vidro frio. Peguei nossa menina no colo, passei minhas mãos por seus cabelos, o que houve, querida? Novamente, as meninas de sua escola haviam feito mais uma brincadeira de mau gosto. Chamavam-na anormal, estranha, idiota, louca, meu Deus, que ingênua crueldade a das crianças! Consolei-a, disse que não se sentisse assim. E citei Eclesiastes, que o padre sempre me dizia com a indolência típica dos padres velhos, aquela calma dos religiosos. “Quanto maior a sabedoria, maior o sofrimento; quanto maior o conhecimento, maior o desgosto”. E ao dizer isso, ouvi em minha cabeça as palavras do padre Getúlio, duras e irretocáveis. E tive a certeza de que eu era culpado, por que fora mostrar a ela o mundo por inteiro quando ela ainda não sabia de nada? Por que fui mostrar a vida a um ser que há pouco havia recebido seu sopro novo? Culpado, culpado, culpado, repeti, culpado. Eu, somente eu, causador da desgraça da nossa garota, tão angelical, tão intocável como o padre, como o padre que não vivera nada, mas conhecia os caminhos, os atalhos e os perigos.
E Clarice foi crescendo, entre sofrimentos e alegrias, entre poucos amores e poucas amigas, entre muitos livros e muitas palavras de conforto ou de martírio. Culpado, culpado, culpado. Uma infância e uma juventude no claustro observando um mundo torto e difícil. Nossa garota crescia, dez, onze, treze, dezesseis anos em velocidade absurda. Nossa garota era linda.
Uma semana antes de completar dezoito anos, nossa garota saiu de casa para nunca mais voltar. Saiu de manhã, enquanto dormíamos e o céu ainda cambaleava indeciso entre o negro e o azul, aquela imprecisa beleza de todas as manhãs iluminando o caminho de Clarice. Deixou um bilhete sobre a mesa, a nossa eterna garota, dizendo que precisava conhecer o mundo. E que a havíamos deixado com tanta vontade de conhecer esse mundo, esse mundo atrás das letras, dos sons e das cores, esse mundo possível sem escamoteações, sem proteções ou máscaras. Vocês me prepararam, ela dizia no bilhete, agora irei seguir o que me foi delegado. Passei o dedo em cima do delegado, escrito fortemente à caneta vermelha.
Abri a janela, o céu azul amarelado, tão indefinível que parecia inexistente. Acendei um cigarro, traguei-o até o fim, imaginei nossa menina andando por aí e procurando o mistério de todas as coisas com milagrosas lentes de aumento. Nossa menina voltará? Fechei a janela, enchi um copo de uísque e decidi ouvir Chopin antes de sair para o trabalho.


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Marcos Vinícius Ferrari.

2 comentários:

Jorge de Barros disse...

É, rapaz, me pergunto o que posso querer te ensinar como professor de Literatura (rs), mas ainda bem que não sou seu professor de redação!
Abraço.

JdB

ETERNA APAIXONADA disse...

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Sem palavras...
Dio Mio...

Sintonias do Coração

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