sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Dura poesia concreta

Durante algum tempo, eu fiquei sem ouvir a canção Sampa, do Caetano Veloso. Ainda que sejam lindíssimos os seus versos iniciais (alguma coisa acontece no meu coração/que só quando cruzo a Ipiranga com a São João), eu achava o resto da letra um impropério, um exagero, uma ofensa a uma cidade tão grandiosa como São Paulo (que hoje, dia 25, completa 454 anos). Eu ficava pensando com os meus botões como o Rio pode ter Garota de Ipanema, Corcovado, Princesinha do Mar, Sábado em Copacabana, Eu gosto mais do Rio, Do Leme ao Pontal, dentre outras músicas consagradíssimas da nossa MPB, em sua homenagem e São Paulo não possuir alguma declaração de amor semelhante. Salvador também tem um rico cancioneiro a exaltando: São Salvador, Saudade da Bahia, Na Baixa do Sapateiro, Bahia minha preta, dentre outras. É claro que tanto o Rio como Salvador merecem essas e outras homenagem, são cidades lindíssimas e incríveis que foram perfeitamente descritas por Tom Jobim, Braguinha, Dorival Caymmi, Gilberto Gil... Também havia Para um amor no Recife, do Paulinho, Rua Ramalhete do Tavito, as belas músicas do Clube da Esquina sobre Belo Horizonte e até Deu pra ti (deu pra ti, baixo astral, vou pra Porto Alegre, tchau).
Contudo, ainda esperava uma música que surgisse arrebatadora para descrever o que São Paulo tem de melhor e não fazê-lo como Caetano, que captou o que de mais contraditório e estranho essa metrópole pode oferecer. E enquanto andava solitário (como em boa parte das vezes) pela República, pelo Arouche, pela avenida Paulista, pelo Ibirapuera, pela Liberdade, ia aumentando o meu sentimento de injustiça porque, querendo ou não, Sampa é imediatamente associada à cidade de São Paulo e vice-versa, e alguém de fora que ouvisse essa música acharia São Paulo uma cidade feia, pobre, suja, opressora. Não que isso seja de todo uma inverdade, mas poderia existir talvez algum lirismo exaltado e romântico com que Tom fez sua Corcovado (da janela vê-se o Corcovado, o Redentor, que lindo) ou o grande Caymmi a sua São Salvador (São Salvador, a terra do branco, mulato, a terra do preto doutor).
Levei certo tempo para compreender a essência de Sampa. Caberia a alguém talvez cantar a beleza ondulante do Copan, os reflexos que quase cegam na avenida Paulista, ou as fontes iluminadas do Ibirapuera. Mas não. Seria enganador, assim como é enganador resumir o Rio a Ipanema-Copacabana. E São Paulo não permite enganação, dado o fato de as coisas estarem eternamente expostas e visíveis. No entanto, ao mesmo tempo em que a ferida de São Paulo está aberta - a violência, a fome, a desigualdade -, sua beleza está, ao contrário, escondida. Ninguém ousa falar que o Rio, Salvador, Paris, Lisboa, Roma, Londres ou Amsterdã são cidades bonitas. Mas há quem hesite em dar o mesmo adjetivo à São Paulo. Porque isso exige demasiada sensibilidade e sobretudo atenção. São Paulo tem uma beleza incomum, que não é fajuta, não é redundante, não é escancarada. Uma beleza cinza, obscura, que reside na confusão, na mistura, no contraditório, no exagerado, no incompreensível, no absurdo até.
Eu sou sempre tocado pela beleza de São Paulo quando saio para fazer alguma coisa e estendo o passeio para contemplar sua arquitetura impensável e me encher de um incomensurável sentimento de possibilidade que emana das linhas do Copan do Niemeyer, ou da indescrítivel sensação de encontro ao andar pela São João observando ao fundo o Banespa que vigia imponente os transeuntes desavisados. Isso é loucura, mas me atinge em cheio. Porque talvez eu tenha um pouco mais de sensibilidade, de atenção ou, o mais provável, de amor por São Paulo. Um amor quase-cego, que faz me admirar até os detalhes mais inesperados mas que também me revolta quando vejo a cidade maltratada e abandonada, como andou nos últimos anos.
Várias experiências em São Paulo, várias observações, constatações e espantos nessa terra-mãe me fizeram enfim perceber que Sampa do Caetano é uma definição absolutamente perfeita de uma cidade desigual, torta, cinza, concreta, dura, crua - mas que é nisso que reside sua beleza-feia, sua estranha composição, seu irresistível charme e sua indiscutível importância.
Hoje ouço Sampa sempre e me dá uma sensação de estranho orgulho não só de viver em São Paulo, mas como o de partilhar de Caetano essa epifania que é a compreensão de uma cidade que de tão estranha chega a ser bela, que de tão concreta chega a ser abstrata. Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso - assim diz a letra.
Poderia eu arrolar aqui os números de São Paulo, a quantidade de pizzarias, a quantidade de padarias, os quilômetros de linha de metrô, que a rua Oscar Freire é a oitava rua mais cara do mundo e coisas similares Mas não é preciso. A grandiosidade de Sampa está nas suas esquinas duras e concretas, no seu ar levemente modernoso, no jeito do paulistano, na sua composição quase nova-iorquina (o bairro dos libaneses, dos japoneses, dos armênios, dos alemães, dos coreanos, dos nordestinos), nas suas avenidas largas, no vidro polido dos arranha-céus, nas calçadas com o formato do estado de São Paulo.
Dito isso, finalizo com um trecho de Sampa: "é que Narciso acha feio o que não é espelho/e a mente apavora o que ainda não é mesmo velho". Poucos Narcisos encontrarão a magia oculta de São Paulo se não se despirem do que Caetano chama de "outro sonho feliz de cidade". Aqui está tudo de pernas pro ar, irreconhecível, estranho, necessitado de compreensão, escavação, observação. Aventurar-nos-emos por essas veredas tão atraentes de Sampa para descobrir-lhe o real e incalculável valor. Novos baianos te podem curtir numa boa, novos baianos passeiam na tua garoa...


(Parabéns, São Paulo!!)

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Marcos Vinícius Ferrari
25/01/2008



(Abaixo, tem um texto antigo meu, sobre o incêndio do Joelma, em São Paulo...)

5 comentários:

nina g. disse...

Parabéns, São Paulo.
de uma interiorana que não sabe o que diz.
¬¬'


beeesos

eutANAsia disse...

Ei Marcos, parabéns pelo blog!
Cheguei até aqui por um comentário seu na comunidade da Gal.

Gostei do seu e linkei no meu, ok?

Até mais!

eutANAsia disse...

PS.: o endereço do meu blog é www.eutanasia.blogspot.com

nina g. disse...

ow, cadê o escritor que eu mais gosto? morreu O.o

ETERNA APAIXONADA disse...

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Marcos Vinícius Ferrari!
Um nome desconhecido para mim até hoje...
Uma pessoa de grande talento!
Sensibilidade a mil!
Parabéns! Tenho pouco a expressar, mas muito a sentir...
Minha admiração!

Helô

Sintonias do Coração

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