Depois que eu trem partiu voltando para os subúrbios eu pude ver: o rato morto. O trem que o matou ou já estava morto? ou apenas dorme? Os ratos vão roendo os dormentes dos trilhos e algum dia todas as linhas vão parar, os ratos vão roendo no subsolo da coisas, a podridão do noturno das coisas. Eu poderia encostar minha mão no rato, talvez ele esboçasse reação, me olhasse e eu seria caridoso com essa figura da criação, roedor de olhos fogueados, eu o acolheria em meus braços. Mas posso pisá-lo esmagá-lo reduzí-lo estraçalhá-lo. Como quem se livra de uma praga urbana, um mal inclemente à saúde e ao conforto. (Mas não há areia e tampouco o mar. Como pisá-lo assim racionalmente? Meu Deus, se existe o perdão o reclamo eu como quem reclama uma parte do corpo).
Vejo o rato e chego a acreditar que ele apenas repousa depois da exaustão de um dia de trabalho. Todos são ratos. Unanimemente todos querem: chegar mais cedo em casa. Meu desejo é apenas ficar. Ratos famintos vão me circundando: sou todo uma armadilha perigosa a eles. Este que passa ao meu lado agora chama-se: Emervaldo, uns 45 anos, certamente menos que 50, na boca 26 dentes de ouro talvez colocados num estabelecimento qualquer da São João, pernambucano ou alagoano, cabelo ensebado, jaqueta jeans esbranquiçada, dois olhos muito grandes e vivos – ele também olha o rato. Ao lado dele, uma mulher olha o chão e pestaneja. Se eu pudesse. Se eu pudesse abraçá-la, não como quem abraça o rato, mas como quem abraça um amigo. Essa mulher cinzenta a quem não é permitido sentir, sonhar (ou sonha?), mas apenas aguentar. Forte fraca. Porque a noite vem galopando a multidão aumenta. João Maria Antônio José Emervaldo Eunice Macabéa Olímpico.
O rato intacto me dói – cada vez mais algo semelhante a uma solução se mostra impossível. Me dói saber que Emervaldo e a mulher do lado se demorarão a chegar. Nos subúrbios horizontais já será o momento em que o silêncio é inquebrantável – todos já dormirão. O rato é tranquilo porque a morte redime – depois dela culpa e vício se mostrarão pequenos ou inúteis demais. Aniquilar a culpa de parar a cidade por um momento – eu preciso não sentí-la. Objeto não identificado na via: um óculos, um relógio, um celular, duas notas de cem reais. Desculpe o transtorno senhores passageiros estamos trabalhando para resolver o problema. (Vou fazer uma canção de amor para lançar num disco voador). Posso explicar a Emervaldo que. Ou me desculpar pela inconsequência do ato ainda não cometido (é necessásrio cometê-lo antes que o tornem crime), mesmo querendo secretamente que ele me segure, me tome com seus braços tão impregnados da força do dia, e me diga que: não. Porque não se poder fazer, porque não é permitido. Mas eu preciso, diria eu a ele, minha vida faz tanto sentido quanto essa estação, os trilhos terminam em algum lugar, não sei onde este termina, mas todos os trilhos do mundo terminam em algum lugar e deve ser o fim de todas as coisas, de todos os caminhos, mas os ratos vão roendo e o fim está próximo pode ser aqui mesmo e eu.
Entanto todos se calam quando veem que outro trem se aproxima
Na gare da Luz, eles estão satisfeitos e felizes: a máquina reluz abortada do escuro. O trem cintila. O trem trabalho, a força total. Trem magnético futurista (o motor tudo tramará?). Torpe ele treme, tenta tocar outro trilho atônito. Trem último, a torrente te teme (eu o temo também). Trem tanto – sua magia vai triturando o chão. O trem que traz e que leva. Sumindo por detrás da serra, eu ainda me lembro. O trem não pode não deve não sabe escolher. Tento tocá-lo. (ele é frio e silencioso).
Salto – e não há mais tempo de corrigir a estranheza do salto. Aos poucos, sinto que vou umedecendo, mudo e líquido, os trilhos da noite escura.
(4.4.09)
3 comentários:
Vou fazer uma canção de amor para lançar num disco voador
Aguardando, ansiosamente, um novo post ! beijoss
Postar um comentário