sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Joelma

Em fevereiro de 1974, o suntuoso Edifício Joelma, localizado na Praça da Bandeira, centro de São Paulo, foi vítima de um incêndio de proporções nunca antes vistas na cidade. Morreram cerca de 180 pessoas.


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Vou pular, vou pular!, eu gritava a plenos pulmões, apoiava-me na sacada de concreto coberta por pequenos azulejos amarelecidos, o fogo sobre eles, o fogo em mim, estou pegando fogo! O incêndio, o edifício inteiro em chamas, placas grossas e úmidas de madeira chamuscadas caindo sobre as cabeças e eu no topo observando com o olhar um morto indolente a cidade de plástico, aço e vidro. Da calçada colorida e estreita, via gente, ouvia apelos, não faça isso! e choravam pela minha morte ainda não consumada. Nos meus estertores, doíam as queimaduras, meus olhos incinerados pela cáustica substância e por dentro eu todo afogueado como se bebesse fogo líquido. Créc, créc, o fogo impiedoso, natureza voraz, Inferno.
Acordei. Maldito sonho! Já faz quase dez anos que tenho esse mesmo sonho, mas não é sempre e sim esporádico, às vezes fico alguns meses sem sonhá-lo e, meu Deus, o Senhor não sabe o alívio que é não acordar sobressaltado com as mãos lúcidas procurando queimaduras inexistentes em meu corpo magro; sem o sopro invisível e branco em minhas narinas; sem a rigidez silenciosa dos olhos com medo, meu Deus, por que me abandonaste? Quem disse isso foi Jesus na cruz, lembro-me do catecismo, lembro-me? A hóstia sagrada, recebê-la era como mastigar papel velho. O vinho que bebi escondido às vésperas da comunhão me desceu rascante – fogo líquido -, acho que ainda estou queimado até agora, por que me abandonaste?
Contei o dilema do meu sonho para o Zé, ele também é mendigo, costuma dormir na praça da República, às vezes está na calçada da avenida Ipiranga um pouco à frente, por que você não vem dormir aqui na República, perguntou-me, eu vacilei, dividíamos um pão com manteiga na ocasião que nos fora dado pelo português dono de uma padaria na rua do Arouche, chamava-se Manuel Coutinho. Coutinho, repetia. Dizia que vinha de um nobre conquistador de Portugal, ele sempre repetia o nome, esqueci-me. Eu e o Zé comíamos ouvindo-o, ele gostava de ajudar os moradores de rua, que Deus o guarde onde quer que ele esteja. Morreu com seis tiros enquanto fechava a sua padaria. Seis tiros, o primeiro na perna, o segundo e o terceiro no braço, o quarto no peito, o quinto no pescoço, o sexto na cabeça, pronto. Uns diziam que foi assalto, outros vingança, outros. Cidade perigosa. Devorávamos os lanches que Coutinho nos dava com fome de bárbaros ou neandertais, fome louca de devorar até um porco inteiro, ou um boi, melhor um boi que comer porco sempre me fez um mal danado.
Aceitei o convite do Zé e saí da praça Clóvis em direção à praça da República, levei dois cobertores meus já desgastados – consegui a muito custo numa loja da rua do Oriente – e quem foi atrás de mim – o único – foi o Pingado, um vira-lata, foi o Everaldo podre de bêbado que o batizou assim, fica repetindo Pingado, Pingado, Pingado, o cachorro. Certa vez tinha dormido na alameda Glete e quando acordei estava em cima de mim esse Pingado, com os olhos atentos e claros, os pêlos já esverdeados, bastardo! Foi me seguindo, mostrando a língua velha e porosa toda esbranquiçada, lambeu-me, cachorro bem vadio aquele, mas gostava de mim, onde estará agora? Depois que migrei para a República, nunca mais vi Pingado. Sei que me encostei às escadarias do metrô República, dormi mais rápido do que o usual, mas o sonho. Daquela vez, eu chegava até o parapeito em chamas e ameaçava me jogar, todavia eu me jogava. Encostava minhas mãos calejadas no bloco de concreto, projetava meu tórax para frente, sentia meus pés saírem do chão, meus olhos saltavam de órbita e pareciam chegar ao chão bem antes do resto do meu corpo, lançava-me. Fosse noite, confundiriam-me com uma estrela, eu que seria apenas uma placa fina de fogo tingindo o céu com uma ardida vermelhidão e aquecendo as possíveis e impossíveis atmosferas, o vinho. Minha hora de estrela. Estrela cadente, diriam apontando o dedo para o corpo caindo, façamos um pedido! Mas não, não era noite, era dia e as nuvens de algodão liquefaziam-se e moldavam-se formando uma escultura interessante: uma mão estendida. Deus? O vento. Queria o Paraíso, estivera uma vez na rua do Paraíso procurando emprego, bem próximo à avenida Paulista, quero o Paraíso de Deus, estivera esperando a vida toda. Estava bem próximo do chão, ouvia um som neutro que era o som múltiplo das vozes em prece, o chão, o asfalto se aproximando em velocidade assustadora, o negro buraco lamacento na rua, o vento violento, a luz!
Acordei com a luz forte da lanterna do policial, acorda! acorda! Chutou-me. Alisou-me sem carinho com o cacetete. Xingou-me, aviltou-me, eu cabisbaixo recolhi minhas coisas e adentrei a noite correndo, poças de água suja nas ruas. Caminhei pela São Luís ainda assustado, isso já me havia acontecido antes, na rua dos Guaianases um policial fez ainda pior comigo, tirou minha roupa, pisoteou-a com aquelas botinas marrons de lama e bosta, cuspiu em mim como se eu fosse um bicho ou menos, na escala evolutiva eu havia parado em algum patamar desconhecido, o dos mendigos, o dos maltrapilhos abandonados em São Paulo, filho de uma puta! eu gritei, bastardo, corri nu até a rua Helvétia na escuridão aveludada cheirando a amônia, cheiro de mijo me deixa nauseado.
Mas havia sido diferente. Eu quase tocando o redemoinho quente, tudo sedução e mistério, e a luz violácea em minha cara, os dois dedos grossos do policial abrindo meus olhos, me deixe morrer em paz, eu gritei embebido no delírio. Creio que o policial não me ouviu. Acordei com um pé no sonho e outro na noite. Antes de virar mendigo, eu achava que mendigos não sonhavam. Dormiam e pronto. Desde quando você é mendigo?, perguntei ao Fúlvio, nome bonito para um cara tão feio. Não sei, ele respondeu, acho que é desde sempre. Desde sempre?, indaguei . Minha lembrança mais antiga sou eu dormindo, ainda criança, ele disse, no largo do Paissandu, eu dormia enquanto as luzes do Banespa se apagavam, eu via tudo com nitidez, tão alto, tão próximo, lembrança mais antiga. No Paissandu há aquela igreja de nome esquisito, toda ela é esquisita, qual é mesmo o nome, Fúlvio? Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, ele disse, toda cor de abóbora. Achei estranho os “homens pretos” no nome da igreja.
Fúlvio eu encontrei um tempo atrás dormindo embaixo do Minhocão, perto da praça Marechal Deodoro. Dormia feito criança enquanto, acima dele, na bandeja de concreto e ferro, passavam a toda velocidade carros e ônibus. Tão perto das janelas dos prédios, abrir a janela e engolir a fumaça negra e asfixiante, a fumaça, o fogo! Zé me perguntou, depois de lhe contar meu sonho, se havia alguma razão, algum trauma, alguma história. Relutei, mas contei-lhe, lembro-me, estávamos na rua Florêncio de Abreu, o sol a pino e calçadas até vazias, eu vou lhe contar, Zé, vou lhe contar.
Quando eu cheguei a São Paulo, comecei, eu desci na estação da Luz e procurei um ônibus que descesse a Ipiranga e a Consolação, eu precisava ir até Pinheiros, rua Mourato Coelho, prometeram-me um emprego bom num escritório de lá. Nada, nada. Tudo desabando, céu cinza, nublado e distante, nunca o céu estivera tão distante de mim e dos outros, indefinível, intangível, fechara-se sem sorriso e sem lágrima. Eu estava no ônibus e percebi que havia um movimento exagerado de pessoas na Consolação, mas eu achei tão normal, não sabia nada de São Paulo, esse monstro do Atlântico de concreto, entende? Todos que estavam no meu ônibus desceram apavorados, eu fui junto, tive medo e angústia, o que está acontecendo?
Era primeiro de fevereiro, véspera do meu aniversário, véspera do dia de Iemanjá, nasci dia dois sob o signo de Aquário, tinha uma tia louca por signos, doida de pedra mesmo, morreu solteira num asilo de Araxá. Fui seguindo a multidão que se dirigia para a rua Major Quedinho alcançando a rua Santo Antônio e, meu Deus, como queria esquecer, como queria esquecer, dormir e não me lembrar mais, limpar a poeira de memória no cérebro com sabão e esponja, esfregar até sair completamente o menor vestígio, mas eu não consigo. Era 1974. Eu vi o edifício Joelma em chamas, parecia que eu lambia os rostos banhados de lágrimas de todos ali: sentia na minha boca gosto de sal puro. Fumaça preta, homens pretos precisavam de uma igreja. E vi um, dois, três corpos caindo numa velocidade imperceptível aos olhos. Gritavam, urravam. Helicópteros riscavam o céu e arranhavam os ouvidos com o bater ávido da hélice rápida, hélice rodando, rodando, o pouso! Bombeiros. Água, água, água para apagar o fogo, o fogo que parecia eterno, que podia consumir a cidade inteira passando de prédio para prédio e em pouco tempo transformar tudo num Inferno, fogo e dor, lágrimas salgadas.
A uns metros de mim, um corpo estremeceu-se todo no concreto, a matéria reduziu-se ao nada, que é de onde viemos e aonde vamos, aonde? Ah, Zé, eu chorei como se fosse comigo, como se fosse real, Zé. Depois, corri para um quarto de pensão que aluguei na rua Rego Freitas, morei ali por quatro meses. No quinto mês fui posto na rua por falta de pagamento. Meu dinheiro acabava rapidamente. Não mais arranjei trabalho decente, Zé, nenhum.
Não nasci mendigo, estou mendigo, Zé, não sei até quando, e sei lá se eu suporto. Olha, há gotas de concreto em meus olhos. Há fogo em meus órgãos. Eu sacudia o Zé, exasperado, fogo, fogo. A cidade convertida em Inferno, sal e fumaça. A cidade iluminada quando pela primeira vez dormi na rua, alameda Cleveland, praguejei contra aquele frio europeu e os gritos foram abafados pelo som do trem passando quase ao meu lado, um vagão, dois vagões, três vagões.
Trinta anos na cidade. Mais de trinta. Durmo e acordo mal, quando como, o faço com pressa e gana animalesca, ando muito sob o sol pedra de ouro falsa, o céu límpido, o ar etéreo da mistura dos hálitos, o cheiro do craque que fungam a exaustão. Certa vez encontrei três meninos de menos de dez anos cheirando craque nas escadarias do viaduto do Chá, ao lado da sede do poder, jardins lá em cima. Dei-lhes uma bronca; não me ouviram. Quando os encontrei novamente na rua São Bento, não sei, tive uma vontade louca de chorar, de me lavar inteiro, na rua São Bento não há luz: paredões homogêneos de concreto filtram sem piedade as ondas de luz e calor, tão tímidas frente às camadas de pedra.
Digo que depois de contar tudo ao Zé ainda sonhei o mesmo sonho várias vezes, contudo uma só vez ele foi diferente. Quando eu enfim fugia das labaredas e me lançava sem medo na rede invisível eu não era mais em essência a brasa da destruição: era uma pena flutuando na cidade. Do alto, via a cidade quase rósea, pousava na abóbada da nave da Catedral da Sé, voava, quase tocava o chão na Vinte e Três de Maio, voava como se nunca tivesse voado, como se tivesse descoberto a funcionalidade da asa que nascera comigo, voava.
Acordei. Esfreguei os olhos com as mãos cerradas, luzes frouxas iluminavam a rua, rua Aurora, eu li na placa, dormi encostado na porta de um bar. Ao longe, dois policiais se aproximavam, duas bolas de cor branca brincavam no ar negro, duas lanternas acesas. Levantei-me e dobrei a Conselheiro Nébias com um medo tremendo. Desapareci no redemoinho das nuvens pretas e rumei para o Paissandu. Até que a avenida São João não fica tão feia à noite.



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Marcos Vinícius Ferrari

4 comentários:

nina g. disse...

melsdels.

Anônimo disse...

linkay, ok?

eu me lembro de algum lugar... O.o

ETERNA APAIXONADA disse...

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Agora, até agradeço você não ter atualizado, pois entrei aqui e nem sei a hora que irei embora... risos...
Estou literalmente passada... Confesso, não esperava ler nada assim hoje...
Creio que não dormirei...

Sintonias do Coração

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Sidney disse...

Cheirando craque?