terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Fragmento

HOJE ACORDEI BEM CEDO, abri as janelas, escancarei as cortinas velhas, puídas, amareladas, botei flores num vaso, coloquei Elizeth na vitrola, tomei um bom banho (gelado) e decidi que ia te escrever. Não para te afligir, como da última vez. Não para te desesperar, não. Quero te contar coisas bonitas, coisas cheias de esperança e de amor, transpirando qualquer sentimento bonito, nobre, exalando qualquer aroma simples e casto como o destas flores. Quero te escrever mineral. Gosto de te escrever como a água brota na pedra, musical e leve. Quero te escrever água, quero te escrever céu, quero te escrever bicho feroz, quero é te escrever sendo o mais simples e primitivo que eu puder alcançar. Não quero ser pesado como fui nas últimas cartas. Quero te escrever floco de algodão, de neve, pluma, vapor, hálito de drops de hortelã. Quero te escrever palavras líquidas.
Estou tão leve. Poderia só escrever esta frase, dobrar o papel em quatro, colocar no envelope e endereçar à Copacabana, você ainda está em Copa? Esses dias, ouvi a Bethânia dizendo que Copacabana cheira a gasolina e a batata frita, você tem noção disso? Fiquei tão louco com isso que à noite sonhei que o mar havia se tornado um grande depósito de óleo sujo. (Vontade de comer os pastéis da tua mãe, lembra?). Se eu te escrevesse apenas que estou leve me daria por satisfeito porque sei que é isso que você quer ouvir: que estou bem, que estou assim como era antes, que não estou pesado. Mas se me preparei é porque quero lhe contar mais. Eu dormi ontem pensando no que te escrever e fiquei rolando na cama elaborando mentalmente cada linha, cada palavra que seria meticulosamente colocada para te impressionar, para te pôr alegre, para te pôr feliz. Esqueci tudo, estou fazendo ao contrário do que planejei. A Clarice anotava tudo o que vinha na cabeça dela, até as coisas mais improváveis e absurdas. Seria bom se eu fizesse isso, mas não sei. Pela minha cabeça são muitas idéias, imagens e palavras lançadas ao mesmo tempo, chocando-se alucinadas, serpenteando-se em mim, colubrejando nem sempre muito nítidas, mas sim escuras e sujas, ôôô. Sou um vulcão prestes a irromper em lava ácida, prestes a gorfar de alívio – quem é mesmo que escreveu isso, meu Deus?
Tô leve, querida, insanamente leve. Tô tão tangível, tão disponível, meus poros andam tão abertos. Tô à flor da pele. Sabe o que é bom: chorar de beleza. Chorei muito de tristeza, chega, chega. Tô chorando enquanto leio um Drummond, uma Hilda Hilst ou um Quintana, não porque é triste, mas porque é belo, porque as palavras estão tão intimamente ligadas como no começo, como no reino das palavras onde a gente penetra e não sabe se sai, se fica, se se deixa enfeitiçar, se se afunda. No Drummond, eu não sei, tudo está num grau tão absurdo de complacência com a o reino mítico de onde surgiu a primeira palavra, o primeiro som, o primeiro grito. E eu choro porque é bonito, porque eu nunca conseguirei escrever aquilo, não só porque já foi escrito, mas porque não consigo mesmo, porque não sou digno, porque a mim me cabe apenas o direito de ler aquelas linhas com abnegação. Como sou abnegado, meu Deus.
Tô chorando até ouvindo RôRô. Choro ouvindo “Naquela mesa” da Elizeth, naquela mesa ele sentava sempre e me contava sempre. Choro porque a voz da Elizeth é tão grave, tão superior, tão madura, e ela está toda entregue a mim nessa canção porque ouço com a mesma atenção de quem ouve a primeira explosão. Chorei esses dias vendo uma cena da novela das oito. E na mesma medida que o belo me atinge em lágrimas, outras coisas têm me atingido com rompantes de felicidade. Eu te dizia nas cartas que. Não sei bem ao certo como dizia, acho que falava que ser feliz é uma ilusão. Pode até ser: mas é uma ilusão que faz bem, que conforta, que acarinha. Ontem mesmo fui comprar flores na rua do Arouche e fiquei inexplicavelmente feliz enquanto andava pela Ipiranga com aquele arranjo colorido, imponente, eu era pura magia e encanto, era importante e superior, não sei explicar. Eu estava inteiro e atracado àquilo tudo o que me cercava, grudado, pertencente, imantado, os prédios, os mendigos que me sorriam sem pensar, as pessoas que me olhavam sem pensar. Estou tão repleto de pequenos prazeres. De pequenos delírios, pequenas epifanias. Semana passada, decidi pintar meu quarto de azul celeste. Eu mesmo fui comprar as tintas, pedi ao Rôni (te mandou aquele abraço) o rolo, os pincéis e tudo quanto fosse necessário. E ao pintar, ao despejar sobre o branco o azul, ao tingir estas paredes tão minhas, tão cheias de marcas, eu sentia outra vez um prazer indizível, uma alegria de criança tão esplêndida como se eu estivesse criando o mundo, o céu, as aves, as plantas, as pedras. Isso só denota minha fragilidade, eu não pareço, eu fico firme, eu me faço de forte, ôô, eu não caio na arena por tão pouco. Mas me derreto com essas coisas tão. Tão não-sei-dizer, tão impregnadas, tão lúdicas, tão dentro de mim e de tudo o que sou.
Estou leve para amar de novo e quantas vezes for preciso. Estou leve até para sofrer de vez em quando. Estou esperançoso também. Um dia vou encontrar o grande amor, o grande amigo, um animal de estimação que não me morda, que não mije no meu sofá. Um dia ainda vou escrever um texto e dizer: isto sou eu, completo, traduzido, codificado, inteiro. Um dia tudo fará um enorme sentido de modo que as coisas vão girar na minha frente, ficar embaçadas, meu cérebro tremerá, sairá fumaça pelos meus olhos, sabe esses momentos de descoberta? Em que a gente fica todo arrepiado, do cabelo até o púbis, fica gelado, estremece, parece que vai cair. Como as personagens da Clarice. Saudades de ler Clarice, de me lembrar de você, das nossas jornadas. Eu sinto tanta saudade. Sou metade passado e metade futuro. Metade ontem e metade amanhã, metade o que passou, metade o que ficou.
Não sei se é porque é domingo, mas a cidade está tão calma. Há algum tempo não passa nenhum carro aqui na São Luís. Talvez o tempo tenha parado para que eu te escreva concentrado e atento a cada palavra, a cada idéia fugitiva. Esse azul me acalma. Logo pintarei também a sala, o banheiro, a cozinha, tudo de azul celeste. Meu céu, todo meu, em cujas nuvens posso me sentar, flutuar, se eu pudesse te enviar um pouco desse azul, um pouco dessa serenidade. Quero te enviar um pouco deste silêncio. Se pudesse, te enviava um pouco do meu cheiro, da minha saudade, do asfalto da São Luís, da minha pele, da minha alma, desse leite gelado que estou bebendo. Por que tudo é tão impossível? Por que em todos os lugares a ciência nos impõe barreiras e os homens nos impõem medos, tarjas, mentiras, traições, violências? Por que você está longe, por que meus amigos estão longe, por que está tão longe o tão almejado momento da revelação?
Alguém me disse uma vez que complico demais. Será? É que eu, querida, eu não sei dizer. As coisas me soam, em determinadas ocasiões, tão estranhas a mim. Me soam artificiais, plásticas, mentirosas, enganosas. Imponderável sentimento de exclusão, de sozinhez (Guimarães?), de ter sede sem ser feito de água. Não é sempre; é esporádico, momentâneo. Parece que estou morto e transito entre as gentes, mas ninguém me toca nem me vê. É como estar morto sem ter morrido. É como se o meu corpo parasse de funcionar como param as máquinas, mas sem parar. É a morte sem morte, é o amor sem amor, é a amizade sem amizade, é a ternura sem humanidade.
Mas não quero te confundir mais do que eu possa te confundir. Quero é te deixar bem, livre. Não ando mais pensando em morte. O Caio Fernando diz que a morte exige algum tipo de grandeza que eu simplesmente não possuo. Nem posso pensar em possuir. Eu quero uma morte simples, não vou mais tomar remédios, me encher com aquelas cápsulas para depois vomitar tudo sobre mim mesmo, vontade de abrir a janela e vomitar no mundo. Despejar na cidade o pior de mim: o que o meu próprio corpo rejeitara. Quando exponho o melhor de mim posso chocar com a mesma intensidade como quando exponho meu pior. Gorfar de alívio. Por que as pessoas têm demasiado medo do meu pior? Não machucarei ninguém, nem causarei náusea, nojo, repulsa, ódio. Muito menos pena. A grande magia reside no obscuro, no fundo de nós mesmos, no fundo mais fundo de nós. Posso ser claridade e obscurescência. Personalidade barroca, melíflua, luz e sombra, amor e ódio, paz e violência, o céu nas minhas paredes, o vermelho no meu sangue.
Mas estou bem. Acho que estou até feliz, satisfeito. A esperança antecede a felicidade. Vontade de tomar um uísque, de ler Rilke, de assistir Oito e Meio do Fellini, de tomar banho de cachoeira. Sou pura promessa. Viver dá uma agonia tão estranha. A vida é uma eterna agonia. Mas enquanto o vento vem me brindar pela janela, e enquanto esse azul das paredes é durável e quieto, eu torno essa aflição menor, diminuta, inexistente. Está tocando uma música tão bonita no apartamento ao lado. O som atravessando as paredes e me atingindo em cheio. Alguém como tu, assim como tu, eu preciso encontrar, alguém sempre meu que me faça sonhar. Sou uma pessoa tão musical. Digo, às vezes. "


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Marcos Vinícius Ferrari
08/01/2008

2 comentários:

nina g. disse...

"Se eu choro, é porque é bonito"

Ahh, é difícil comentar nesses textos perfeitos porque quase todos são perfeitos e porque quase sempre o comentário fica igual, sabe? mudado em poucas palavras, como as músicas do Tiririca...
queria saber escrever. queria mesmo. porque escrevendo você põe pra fora tudo o que você quer... e deixa oq ue não quer dentro de você. você, o que é você? não sei.. depende... é difícil. eu sei algumas coisas sobre você. sei que você escreve bem.. sei que você é um puta amigo, sei que você é irônico, sarcástico.. que as mudanças te fazem bem... ou não... ou posso não saber absolutamente nada. quem sabe?
tudo que eu queria te dizer é que o texto ficou muito bom, ficou lindo mesmo. e que "se eu choro, é porque é bonito".

com carinho,

Ma

Tayran Olegário disse...

Marcos, eu não sei escrever muito bem e talvez no meu comentário vc encontre algum erro de português, mas queria te dizer que eu adorei o seu texto (o que você escreveu por ultimo)que me deixou tão emocionado que eu quero compartilhar com minha amiga (acho que vc deixa né?).
Se fala de saudade fala sobre mim, pois tudo que eu quero é pintar meu mundo de aZhu.
Obrigado meu amigo pela ótima sensação (uma saudade boa) que seu texto me proporcionou.

Até!!!

Tayran