sábado, 12 de janeiro de 2008

Quando os morangos finalmente mofam

Há algum tempo, quando eu estava passando por um momento extremamente difícil, encontrei de forma bastante inesperada (ele mesmo diz: "É preciso estar distraído, não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado.") a obra do escritor gáucho Caio Fernando Abreu (1948-1996). Até hoje trago com muito carinho as palavras ora duras, oras sutis, ora líricas, ora pétreas do Caio. Talvez isso venha justamente porque meu primeiro contato com sua obra está diretamente associada àquela necessidade tão urgente de um arrimo, de um porto-seguro, de qualquer palavra que me mantivesse de pé, inteiro, vivo. Todo dia tento ler um pouquinho, um conto, um trecho, uma frase que seja. E faz um tremendo bem porque no Caio as coisas são diretas, estão cristalinas, disponíveis, entregues. Talvez compreender Caio e toda a sua essência exija um pouco de sensibilidade e, sobretudo, um gauchismo meio exaltado. Ele escreve é para os tortos, para aqueles que vagam pelo mundo desamparados, sozinhos, cabisbaixos. Escreve para casmurros sem teto, sem lugar, sem origem, sem destino, sem sonhos. Porque a todo momento estamos desabando e nos levantando, trazendo de cada queda centelhas de dor, de desamor, de ódio, de esperança, de dignidade - trazemos é cada vez mais apurada nossa sagrada compreensão das coisas e das pessoas.
Caio exala em cada linha a sobriedade de quem viveu e sabe do que fala. Sabe dos perigos, das verdades, das inverdades, do que o Drummond poderia chamar de sentimento do mundo. Mesmo tendo morrido aos 48 anos e publicado o primeiro livro aos 20, desde sempre há em Caio o conhecimento e a vivência dolorosa de mundo fragmentado, mentiroso, angustiante, descrente.
Pena não poder conhecer Caio. Pelo que tenho lido, Caio sempre foi uma autor bem próximo de seus leitores e participativo, disponível, aberto. Ele diz que conheceu Clarice nos anos 70 e depois do encontro, quando voltou para casa, chorou a noite inteira por ter visto nela o peso, o sofrimento, a compreensão do mundo. Conhecer Clarice e mesmo o Caio causaria em mim a mesma sensação: essa sensação que descrevi, justamente a proximidade de auras tão iluminadas, tão densas, tão belas e tão sofridas. Tão calejadas. Tão refugiadas na palavra, que encerra toda a dor sem pedir nada em troca, afora oferecer-se ardente e cálida a quem lê. Esses são artistas natos, que buscam na manifestação artística o abrigo urgente. Tudo em Caio é tão urgente. Precisamos ler naquele instante, sem demoras, como se o texto em nossa frente derretesse e como se cada palavra se tornasse líquida e fosse preciso um gesto rápido para manter a folha do livro rígida, para não entornar em gotas o precioso texto. Para não desperdiçar o sagrado, o profano, o manjar que Caio nos oferece. Com tristeza e soturnidade, embora. Mas é como disse o grande Carlos Heitor Cony (ele disse isso na minha frente, numa palestra): "Para escrever é preciso um pouco de tristeza. Nenhum homem feliz faz uma grande obra."

Abaixo, estão alguns trechos do Caio que escolhi para mostrar um pouquinho (pouco mesmo) da grandiosidade de sua obra. Do bairro do Menino Deus, em Porto Alegre, para o mundo, eis o nosso eterno Caio Fernando Abreu:


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"Te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em tudo outra vez."

"Não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais auto destrutiva do que insistir sem fé nenhuma? Ah, passa devagar a tua mão na minha cabeça, toca meu coração com teus dedos frios, eu tive tanto amor um dia."

"O que eu queria era alguém que me recolhesse como um menino desorientado numa noite de tempestade, me colocasse numa cama quente e fofa, me desse um chá de laranjeira e me contasse uma história. Uma história longa sobre um menino só e triste que achou, uma vez, durante uma noite de tempestade, alguém que cuidasse dele."

"Quando um dia você vier a Paris, procure. E se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo."

"Que bom se fôssemos cavalos e corrêssemos por um campo de trigo, com papoulas nas margens."

"Tive vontade de sentar na calçada da rua Augusta e chorar, mas preferi entrar numa livraria, comprar um caderno lindo e anotar sonhos"

"Devia ser sábado, passava da meia-noite. Ele sorriu para mim. E perguntou:
- Você vai para a Liberdade?
- Não, eu vou para o Paraíso.
Ele sentou-se ao meu lado. E disse.
- Então eu vou com você."

"Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra."

"Tenho uma vontade besta de voltar, às vezes. Mas é uma vontade semelhante à de não ter crescido."

"Me ajuda que hoje eu tenho certeza absoluta que já fui Pessoa ou Virginia Woolf em outras vidas, e filósofo em tupi-guarani, enganado pelos búzios, pelas cartas, pelos astros, pelas fadas. Me puxa para fora deste túnel, me mostra o caminho para baixo da quaresmeira em flor que eu quero encontrar em seu tronco o lótus de mil pétalas do topo da minha cabeça tonta para sair de mim e respirar aliviado e por um instante não ser mais eu, que hoje não me suporto nem me
perdôo de ser como sou sem solução"

"Porque sempre se chega um momento em que até o bom se torna insuportável"

"Era sábado à noite, quase verão, pela cidade havia tantos shows e peças teatrais e bares repletos e festas e pré-estréias em sessões da meia-noite e gente se encontrando e motos correndo e tão difícil renunciar a tudo isso para permanecer no apartamento lendo, espiando pela janela a alegria ou tentando descobrir alguma lasca de carne nas sobras frias da galinha de meio-dia."

"Estenderam as mãos um para o outro. No gesto exato de quem vai colher um
fruto completamente maduro."

"De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria, em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã."


12/01/08

Um comentário:

nina g. disse...

"De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria, em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã."

Caio Fernando tem um PUTA ORGASMO com unhas, não?
aishaiuhsaiuhsiush

Sabe, Dudu? O texto ficou ótimo!