terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Hortelã Adocicado

Ângela dizia que durante o sono eu falava o nome da Vilma e ria me revirando na cama, Vilma, Vilma. Nem durante o sono, nem mergulhado no sonho, nem assim nesse momento em que estou tão virado para dentro consigo privacidade. Privacidade, ela dizia estalando os dedos a cada sílaba e entrava no banheiro, recolhendo as peças jogadas no chão e jogando para o alto, num gesto de desabalada loucura, olha isso, olha isso, olha isso, e mostrava a minha velha Lee deitada horizontalmente no vaso sanitário, suja, com nódoas de amarelecidas quase eternas, tatuagens na calça raramente lavada, não tenho tempo de mandar para a lavanderia, eu disse e voltei a dormir enfiando com violência minha cara no travesseiro até sentir aquele cheiro branco da fronha, cheio de vômito, sabão e água de colônia. E ela adentrava o banheiro como quem adentra um castelo mal-assombrado num parque de diversões. Como eu posso usar um banheiro desses? como?
Acordo, abro a janela, e sinto o gosto de hortelã adocicado das manhãs nessa cidade, esse cheiro rascante de vidro molhado, mijo e álcool que a cidade tem. Meio mareado, cambaleio, vou da janela até a cozinha, apóio minhas mãos na mesa envidraçada e observo o contorno úmido dos meus dedos no vidro. Abro a geladeira e lembro que preciso comprar leite, ovos, farinha, coentro, salsicha (para comer com arroz nas noites preguiçosas) e pão. Comprar também incenso. Olho o turíbulo sobre a estante descansando, Vilma adorava incensos e tinha um jeito todo especial de acendê-los e fungar-lhes o cheiro como quem prova pratos de olhos vendados. Ela deixou vários incensos aqui no apartamento, junto de algumas bijuterias e calças. Vilma ficava bonita de jeans, apesar de gostar muito de usar saias e sandálias altas só para ficar mais alta do que eu quando saíamos para fazer compras no Eldorado ou na rua Conselheiro Crispiniano, comprar rolos de filmes, rolos e mais rolos que ela gastava em segundos fotografando tudo o que via, mas tinha predileção por fotos de flores, pássaros, edifícios, crianças e nu. Chamava amigos e amigas para posarem mas todos recusavam de imediato vendo o ridículo da proposta. E Vilma não entendia, mas não entendia mesmo essa barreira moral à arte, essa barreira hipócrita que se desfazia como uma torre em ruínas a cada flash anunciado, Vilma não entendia. Ela também me convidava sabendo da redundante renúncia, vinha com a câmera pendurava no pescoço cujo visor grande descansava sempre em meio aos seios, eu não vou ser fotografado por você, Vilma, não, Vilma, não, Vilma, Vilma.
Há várias fotos aqui pela mesa, pela parede, no quarto, na lavanderia, lindos pôsteres que Vilma fazia. Ela dizia que gostava da tendência assumidamente barroca que a sociedade assumia, entende? Fotografou certa vez um punk entrando no metrô e um skinhead saindo. Achou aquilo o máximo das suas simbologias, porque mesmo os seres mais discrepantes e discordantes entre si acabariam se rendendo a um ponto comum, onde se interscecionariam seja por falta de opção, seja por coincidência. Quase como fotografar Hitler escorado no muro das Lamentações. Eu dizia, não viaja Vilma, mordendo um pedaço quente de pão com queijo prato. O skinhead correu atrás de Vilma, deu um chute em sua perna que quase a derrubou, gritou sua piranha vagabunda me dá a porra da câmera, e nada. Nada de tendência barroca, nada de intersecção. Vilma ainda relutou, disse que era profissional, que trabalhava para um jornal, não quis ofendê-lo, eu não vou publicar sua foto, implorava chorosa, pressionando contra o ventre a máquina, como um filho grávido de outro filho, a máquina grávida de uma fotografia. O skinhead não quis nem saber: com suas botas enormes e pesadas, começou a pisar em Vilma, machucando-lhe os seios, a cara, pulava, esmagava seus joelhos como quem apaga um cigarro no asfalto. Tirou-lhe a máquina, rodopiou no ar seguro pela tira com que Vilma a pendurava no peito e jogou longe, aquele cubo negro dando voltas no céu, pelo amor de Deus, implorava ainda Vilma ensangüentada, me deixa ir me deixa ir me deixa ir pelo amor de tudoquevocêtemnavida. Eu que andava por aquele quarteirão notei a aglomeração de pessoas formando um irregular círculos em torno de Vilma e de seu algoz, ajoelhado sobre seu corpo como que tentando estuprá-la. Com as mãos nervosas afastei as pessoas, derrubei algumas no chão e me coloquei na frente do skinhead de cabeça vermelha e suspensórios azuis, agora você vai ter o que merece. Sorri para Vilma que piscou para mim complacente e sensual, chutei os colhões do agressor, dei com minha mão fechada em seu rosto até fazê-lo cair ondulando no chão, como uma pasta vermelha e suja. Vilma ainda sorria, mas quando acordei assustado, dei de cara com a foto do punk e do skinhead no metrô, um entrando e outro saindo, a foto na minha escrivaninha defronte à cama.
Passo os dedos pelo turíbulo e quase saio para comprar muitos incensos, para a provisão do mês inteiro. Contudo, vejo a General Jardim cheia de gente e me desanimo. Ainda sinto sono mas não quero dormir, já são quase três. Desde criança, mamãe dizia que eu falava coisas durante o sono. Papai achava que era doença, só podia ser. Era como se dois fios dentro de mim houvessem se tocado e com o calor se fundido fazendo assim como que o que vinha do inconsciente fosse diretamente à boca, saindo como lama após a quebra de uma enorme barragem. Meus sonhos! meus medos, minhas loucuras, minhas dores, tudo falado em bom tom para todos da casa ouvirem. E acho que, pela manhã, olhavam-me desconfortáveis, eu tentava me lembrar do que teria dito na noite anterior, que queria comer a Cecília, que a professora havia se transformado numa gigante toda verde e sem dentes que corria atrás de mim com uma foice em chamas perguntando-me quanto era 7x8, me diga, moleque, me diga, 7x8. Toda noite antes de dormir ficava escabreado sabendo que, a qualquer momento, eu ficaria exposto sem controle, seria revirado ao avesso, traído pelo meu próprio sono, pela minha própria tranqüilidade. Queria não dormir e me manter retesado ao pé da cama em vigília ou talvez deitar-me com a boca cheia de esparadrapos que não permitissem escapar um sonho sequer, uma imagem surreal que fosse. Mas minha mãe logo alertou que eu poderia morrer sufocado durante a noite, assim como acontecera ao primo Júlio que engasgou à noite, e acabou asfixiado pelo próprio travesseiro. Primo Júlio sempre me assustou, aquela cara redonda, vermelha e cheia de espinhas já sem vida no travesseiro enquanto um pedaço de carne dançava na sua garganta, impedindo-o de respirar, de viver. Certa vez, ouvira papai falar ao Ernesto, empregado da fazenda, que alguém tinha matado Júlio, talvez seu irmão invejoso e finalizou citando Esaú e Jacó, sem atinar que o irmão assassino da Bíblia era Caim, que oferecera frutas do solo ao Senhor e este teria preferido a oferenda de Abel. À noite, acho que sonhei que meu irmão mais velho, Tadeu, corria atrás de mim pela fazenda carregando um cesto de vime cheio de frutas podres e jogando-as em minha cabeça e outras desvivam do alvo e caíam ocas no riacho. De repente, tudo escurecia e eu desmaiava no chão, como no quadro de Doré, observando somente a sombra de Tadeu lançando as frutas desprezadas pelo senhor, não me mate, Tadeu, não, Tadeu, não.
Tadeu nunca tocou nesse assunto, mesmo passados mais de vinte anos. É certo que ele ouviu e talvez nem tenha levado em consideração. Vilma achava Tadeu um cara estranho, sempre com aquelas camisas de flanela, a barba mal-feita, riscos de carvão, o costume de assoviar Glommy Sunday ou Sugar in my bowl enquanto as outras pessoas falavam. Ela disse que certa vez, enquanto dormia, eu pedia a Tadeu que não mais me jogasse as maçãs envenenadas em mim porque a serpente era mãe dele. Eu ri e contei à Vilma a história de que Caim seria filho de Eva com a serpente, que ela ouviu incrédula e risonha.
Parece que vai chover. Se Ângela estivesse aqui ela cozinharia algo com champignons, fresca até não poder mais, adorava colocar coisas aparentemente improváveis ou imiscíveis no que cozinhava. Sempre que vinha para cá trazia uma garrafa de vinho ou uma lata de marron glacé, sabia que eu adorava. Comíamos, bebíamos e para quebrar a rotina às vezes eu colocava um disco, ela perguntava se ela era fotógrafa, que tal ouvirmos Tom Jobim?, por que você ainda pendura essas fotografias ridículas?, Maria Bethânia?, o que é isso de cabelo vermelho na foto?, veja só um disco da Maysa, ela também gosta de nú artístico, é?, eu gosto tanto da Maysa, enfia essas fotos no seu rabo. Se fosse a Vilma, ela pediria para ouvir Edith Veiga, fungaria o cheiro do incenso e pediria Edith, faz-me rir o que andas dizendo, que te adoro e que morro por ti, não te enganes dizendo mentiras. Então, Vilma andaria descalça pela sala trançando os braços no meu pescoço, imitando a voz grossa e nasal da Edith, até parece impossível que um dia foste o homem sonhado por mim, esta cínica farsa de agora faz-me rir. E bailaríamos pisando nos pratos colocados no chão, lambuzando as solas do pés com aquele caldo de champignon, esbararíamos no sofá, e eu beijaria seu cabelo, seus lábios ainda teriam o gosto da tubaína e da empada de palmito que pedira pela tarde num boteco e os meus ainda teriam o gosto do marron glacé de lata, tombaríamos no chão como duas crianças mas ela desavisada encostaria com demasiada força a cabeça no velho assoalho de madeira. Sangraria um pouco pela boca e depois sorriria com os dentes avermelhados. Eu despiria a morta e incensaria lentamente seu corpo branco como que de cera e leite.
Acordo, abro a janela, e sinto o gosto de hortelã adocicado das manhãs nessa cidade.



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Marcos Vinícius Ferrari
21/01/2008

Um comentário:

nina g. disse...

56, querido...

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