domingo, 13 de janeiro de 2008

Quase-quase


Eu tive, há alguns meses, o prazer e a honra de ver pessoalmente o brilhante jornalista e escritor Carlos Heitor Cony (1926-), por ocasião do I Salão do Jornalista Escritor, aqui em São Paulo. A palestra que ele ministraria no auditório começaria por volta das 18h no Memorial da América Latina. Contudo, quase meia hora antes, eu estava prontamente na fila que lentamente crescia. Eu já ficava impaciente quando vi um grupo de pessoas vindo em minha direção e logo reconheci, no meio das outras cinco ou seis pessoas, um senhor de cara gorda, bigode, bastante robusto, de terno cinza, amparado por uma mulher loura e por uma bengala. Conhecia o Cony somente por tê-lo visto algumas vezes no Programa do Jô e por fotos nos jornais - sem dúvida era ele ali na minha frente. A mulher loura segurava nos braços do Cony e pedia licença a todos. Foi quando notei que eu estava bem próximo à entrada da sala vip, para onde se dirigia aquela pequena comitiva. E não sei se é paranóia minha, mas eu recuei um passo para dar licença ao Cony e percebi que ele me olhou fixamente por um ou dois segundos. E ainda hoje guardo aquele olhar assustado, estranho, que o velho Cony me lançou, trazia a cabeça um pouco baixa e parecia exausto. Eu poderia ter pego em suas mãos, dito que era fã dos seus inúmeros romances (apesar de só ter lido um até hoje), abraçado-o, beijado-o, ajoelhado-me aos seus pés, dito que ele era um dos jornalistas nos quais mais me inspiro... Poderia ter feito mil coisas mas senti que aquele olhar incomum que Cony lançara (talvez não para mim, mas para a pessoa detrás de mim na fila, ou ainda um olhar geral para o hall do Memorial) me barrara instantaneamente. E fiquei gelado, feliz, satisfeito, diria até glorioso. Quando dei por mim, Cony já estava dentro da sala onde também estavam Luís Fernando Veríssimo, Ignácio de Loyolla Brandão, Moacyr Scliar, Elifas Andreatto, dentre outros jornalistas/escritores que haviam participado de atividades durante o evento (às quais eu havia também comparecido). Lá ele certamente foi bastante festejado e bastante abraçado até o momento em que começou a palestra.
Subimos todos para o enorme salão onde seria conferida a entrevista/palestra. Tratei de sentar-me numa das primeiras fileiras, ao lado do corredor. Não sabia eu que Cony sentaria-se justamente na minha direção num sofá colocado no palco, em linha reta com o meu olhar atento. Havia pelo menos mais 150 pessoas assistindo. Cony entrou (novamente amparado pela mulher loura), sentou-se com dificuldade e foi largamente aplaudido. A entrevista deve ter durado umas duas horas e por esses deliciosos minutos, fez-se sepulcral silêncio para ouvir as palavras daquele homem de 80 anos de vida, 60 de jornalismo e 50 de literatura. Todos ali no auditório (à minha exceção e de outros gatos pingados) eram apenas reles estudantes de jornalismo querendo absorver, em sua maioria, apenas informações meramente profissionais. Graças à Deus, Cony não se prendeu nisso e foi além: viajou na história do jornalismo brasileiro, desde os tempos de seu pai (o também jornalista, Ernesto Cony, que trabalhou por bom tempo no Jornal do Brasil) até os atuais, atenuando com certa nostalgia e glória os tempos amadores e quase artesanais do ofício de noticiar (que hoje, infelizmente, virou a indústria de noticiar). O tempo em que jornalistas todos se conheciam e faziam acordos em que um não poderia dar furo em outro (se um descobrisse algo, deveria compartilhar com todos). Tempo em que não se usava nem a máquina de escrever, tempo em que jornalismo era vocação e não opção, modismo ou comércio. Talvez alguns obtusos estudantes ali tenham se enfadado; eu, pelo contrário, fiquei encantado pela fala mansa (ainda que excessivamente carioca, arrastada, puxada nos érres), pausada, lenta mas firme e rija.
Cony falou também (lembro-me ainda muito bem) do seu primeiro romance, "O Ventre" (1958), com clara influência do existencialismo sartriano (dois anos antes de Sartre pisar em terras brasileiras). O livro foi premiado pela comissão do Prêmio de Literatura Manuel Antônio de Almeida (cuja banca contava com medalhões como Manuel Bandeira e Austrigésilo de Athayde), porém não pôde levar o troféu: era um romance forte demais. Essa força, que poderia ser traduzida como violência, agressividade, até mesmo exagero, seria mais uma vez exposta naquele que Cony disse (não só naquele dia, mas em várias entrevistas) ser o seu melhor livro: Pilatos (1974), romance cujo protagonista é um homem castrado que carrega seu pênis num vidro de compota, vagando pelo centro do Rio, representando o Brasil pobre e castrado de sua liberdade e de sua força após o golpe de 1964. Sobre o regime militar, Cony também teceu longos comentários durante a palestra, revelando suas várias prisões nos anos 60 e suas conseqüências.
Eu assistia ao Cony falando, mas lembrava daquele olhar, dos dois olhos negos e pequenos de Cony que tanto poderia simbolizar um simples "dá licença, moleque" ou algo mais, em que minha mente viajava buscando impossíveis conotações. O velho não me conhece, não sabe de minha paixão pelas letras, talvez desconfie da minha grande admiração por ele - por estar esperando para vê-lo falando num sábado, às 18h - e nunca me conhecerá, se por um acaso sair um livro meu daqui a alguns anos, ele não lerá, não quererá saber, sequer ouvirá falar... Eu ia repetindo isto, mas ainda estava encantado-desconfiado com o olhar estranho. Fosse Machado de Assis que passasse na minha frente amparado pela fiel Carolina, eu teria me jogado aos seus pés, lambido a sola dos seus sapatos e gritado ao mundo que meu blog tem um título que é, de certa forma, uma referência à sua obra-prima, e diria que sou seu fã, que ele é o melhor escritor dessa de língua portuguesa, que Eça de Queirós que nada! (Detalhe: Cony revelou na entrevista que ele estudou no mesmo seminário pelo qual Bentinho, de Dom Casmurro também havia passado e onde conheceu o amigo Escobar). Fosse Chico Buarque, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, fosse qualquer um desses também aproveitaria da proximidade forçada, atirava-me à porta da sala vip e trancaria a passagem, só deixo você entrar, Bandeira, se me autografar esse livro aqui (eu estava com algum livro que fui lendo no metrô, só não lembro agora qual era a obra). Faria isso com todos esses e até faria - com mais ou menos discrição - uma demonstração de carinho para o Cony não fosse aquele olhar pétreo, impaciente, quase me mandando, me obrigando, me impelindo a deixar-lhe livre a passagem, mas quem é esse cara para me dar ordens? Só por que ele é a estrela da noite? E quem é ele? Fosse algum astro de Hollywood, fosse um Guimarães Rosa, fosse um Proust, fosse um Mozart, vá lá, até entenderia e cederia aquele metro quadrado de chão para que ele pisasse e continuasse a caminhar com tranqüilidade para a sala vip. Mas o que esse escritor de terceiro mundo quis me ordenar com o olhar tão duro e tão seguro? Também eu poderia ter compreendido erroneamente. Poderia entender talvez como um olhar cúmplice, de quem conta um segredo ou, ainda, de quem não pode contar algo importante naquele dado momento. Talvez a loura estranha não pudesse ouvir a revelação que ele trazia guardada desde o Rio até desembarcar em São Paulo e que, ao me ver, talvez tenha necessitado contar, ou me avisar não sei de quê. Estava confuso e decidi voltar minha atenção à palestra.
Cony falava de suas leituras fundamentais (Machado), mas citou de forma bastante ambígua suas teorias sobre o Bruxo do Cosme Velho (Cony consegue provar por A + B que Machado traiu José de Alencar com sua esposa - que teria dado a luz ao fruto da traição, o também escritor Mário Alencar... E isso teria dado origem ao Dom Casmurro...Bem, depois posso expôr essa teoria maluca aqui no blog). A entrevista já findava e Cony passou a falar da necessidade da tristeza ao artista em geral, dizendo (trago ainda na memória): "Um homem feliz não faz uma grande obra. Um homem feliz não faria 'O mercador de Veneza'. Um homem feliz não faria a Nona sinfonia. Eu escrevo todos os meus livros na fossa mesmo". Foi bom ouvir aquilo de um escritor de tantas obras consagradas como "Pessach: a travessia" e "Quase Memória" - sendo este o único romance do Cony que li até hoje. Enquanto ele falava sentado na beirada do sofá, eu ia gradualmente lembrando do "Quase Memória", um livro delicioso que, pelo meus cálculos, li pela primeira vez no começo de 2005. Li, fiquei maravilhado e inclusive presenteei uns três amigos com exemplares desse livro. O auditório estava tão escuro (nas outras palestras do dia, havia mais luminosidade) e isso dava um tom ainda mais soturno à voz meio cavernosa do Cony. E se enquanto falava, Cony me localizasse na platéia e me olhasse de novo, ordenando-me aquilo que não entendi, soprando-me aquilo que não captei, ou simplesmente olhando perdido, vago e sem intenção alguma de me cooptar ou me coagir? E se ele, não sei, soubesse que eu escrevo ou tivesse visto meu nome da lista dos que queriam receber o certificado de participação no Salão (que, passados dois meses, ainda não chegou)? E se ele quisesse me dizer que eu continuasse, ou que eu parasse, que a profissão é dura, que tudo é pedra e barreiras? E se ele quisesse me dizer o mesmo que disse àquela entrevista que ele concedeu à Playboy:" jornalista é um peixinho de aquário, que faz gracejos; escritor é um peixe que tem toda a profundidade do oceano onde o sol não entra"? Mas se aquele evento justamente tentava achar o ponto de articulação do jornalista e do escritor como uma coisa só, fundida numa só coisa (que é justamente a coincidência de ambos talharem a palavra, ainda que para variados fins, seja na crônica, na reportagem, no romance ou na novela), num só valor para o qual convergiam todos os debates (que, agradevelmente monótonos, versavam sobre o gênero reportagem, sobre as biografias, sobre o caso-verdade, sobre jornalismo social, etc.). Então, o que queria Cony me avisar com aquele olhar tão certeiro que talvez tenha certeza de que não era tão somente um pedido de licença mas sim algo encaixado numa esfera maior a qual não compreendo até agora?
A entrevista acabou, decidi que não ia ficar para a palestra seguinte (Caco Barcellos), já era noite, tinha de pegar metrô e trem, e uma reunião familiar já me aguardava em casa. Não fui atrás do Cony, não fui levar sequer o livro que eu trazia em mãos (que livro era, meu Deus?) para que ele autografasse e tampouco fui tirar satisfações ou acertar minhas contas com ele. Apenas me retirei do Memorial, caminhando sozinho pelo pátio escuro, ouvindo o barulho dos trens de subúrbio que passavam alucinados ao lado, na estação da Barra Funda. Aqueles trens, aquela estação - que hoje está bastante modernizada e cheia de gente - já pertencera à antiquíssima São Paulo Railway e me fez lembrar de um episódio contado no livro "Quase Memória" de Cony. E sentado conforavelmente no metrô, fui recordando...

O livro "Quase Memória" é, segundo o Cony nos conta um quase-romance porque é despojado demais, memorialista demais ao mesmo tempo que é irrepreensivelmente ficcional. Isso faz dele uma obra irregular demais que Cony chama de quase-memória, quase-romance, quase-quase. Em termos editoriais, porém, esse livro não foi um quase e sim um grande êxito: pela época do seu lançamento, em 1995, vendera mais de 400 mil exemplares (fato bastante raro). O enredo se dá da seguinte maneira: Cony - o próprio, quem nos conta a história - recebe um pacote destinado a ele numa tarde no Rio de Janeiro. Inicialmente estranha aquele pacote, aquele embrulho, aquele nó dado perfeitamente no centro, o cheiro de alfazema e brilhantina, o peso, a letra com o destinatário ("Ao jornalista Carlos Heitor Cony"). Durante o livro, é esse pacote misterioso que conduz Cony a uma instigante viagem ao seu passado focado especialmente na figura do seu pai, já citado aqui, Ernesto Cony. Esse pacote faz a ponte entre o Cony-filho e o Cony-pai assim como o biscoito madeleine para Proust ou o Rosebud para o Cidadão Kane de Orson Welles. Com muita delicadeza, Cony-filho relembra (inventa?) casos da vida do seu pai, construindo assim um personagem de carga mítica, cheio de manias, trejeitos, peculiaridades que permitem ao leitor traçar o perfil perfeito do patriarca da família Cony e o seu legado que o narrador nos apresenta como "legado de tristeza, mansidão e fragilidade". O embrulho misterioso, que muito lembra a presença de seu pai, faz Cony deixá-lo intacto sobre a mesa, intocável, tentando encontrar através dele algum sentido palpável - o que vem com os casos protagonizados por seu pai, como o do balão roxo e branco, da "fábrica" de tintas, da morte do jacaré, da romaria para Minas Gerais, das mangas de cemitério, da recepção de Sacadura Cabral... Casos verídicos ou não que povoam a cabeça de Cony e montam, de forma fragmentada, a imagem do Cony-pai, controvertido, original, intenso e inesquecível.
Decidi reler este livro nos últimos tempos, aproveitando o fato de ter conhecido Cony e de ter recebido dele alguma mensagem ainda não traduzida por mim. E isto só aumentou o prazer de reler esta obra tão deliciosamente lúdica, tão carregada na memória pessoal e afetiva- bem do jeito que aprecio -, de linguagem simples, rápida, gostosa de se ler, apaixonante. Outro fator que orientou minha leitura para outros caminhos foi a entrevista que Cony deu (se não me engano, à Folha de São Paulo, jornal para o qual trabalha atualmente) dizendo que o livro não é um hino de amor ao pai, mas sim um pedido de desculpas pelo eventual desprezo com que tratava o seu pai na maioria das vezes. Uma tentativa de revisitar o passado e dar-lhe alguma dignidade, alguma humanidade, alguma maturidade. Tentativa não quase-alcançada, mas sim conseguida na plenitude, com honra e qualidade, com emoção e sensibilidade que emanam de cada palavra, com doses certeiras de nostalgia e mistério.

Enquanto relia "Quase Memória", sempre me vinha o velho Cony, 81 anos, metido naquele terno cinzento, a me fitar às vezes brutal, às vezes tão paternal, não sei. Talvez quisesse me informar o que realmente é o embrulho que literalmente desembrulha o protagonista e inicia as memórias. Ou talvez não quisesse dizer absolutamente nada, nem uma intimação, nem um elogio, nem uma saudação. E sim um olhar gélido e impessoal, desprovido de qualquer sentido ou intenção. Não que esse episódio tenha me tirado o sono, de forma alguma. Mas habitou um pouco a minha fétril imaginação e temperou a releitura do livro e temperará as possíveis e provéveis releituras que eu fizer. Às vezes até tenho idéias estranhas de mandar um e-mail à caixa do site oficial do Cony, no anonimato, dizendo que sei o que é o embrulho do "Quase Memória", dizendo que eu fiquei ofendidíssimo com a brutalidade daquele olhar ou que eu fiquei confuso com a confissão interrompida. Queria fazer esse tipo de terrorismo ridículo. Seria debalde. Vou é sonhar que Machado de Assis piscou para mim enquanto passeava no Parque Lage ou que Mario de Andrade me acenou de sua sacada na Lopes Chaves ou ainda que Drummond veio lépido descendo as ladeiras de Itabira para me cumprimentar e me oferecer um pedacinho de bolo de fubá.
Na verdade, o melhor seria justamente o oposto do pensamento do protagonista do livro (Cony-pai): amanhã não sonharei com essas coisas...

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"Quase Memória" - altissimamente recomendado. Dá para encontrar por preços módicos em qualquer sebo que preste. Sabem o que é bom? O "Sebo do Messias" na praça João Mendes, centro de São Paulo. O livro tem 213 páginas e os menos preguiçosos conseguem fazê-lo em uns três ou quatro dias. Boa leitura!

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Marcos Vinícius Ferrari
12/01/2008

2 comentários:

nina g. disse...

Quase-quase-quase.
Eu ainda acredito que Quintana virá me oferecer doces.
:]

nina g. disse...

esse livro me lembra alguma coisa...